1º de Abril


Sempre gostei do dia 1º de abril — o Dia da Mentira! Ter um dia, um só, em que a mentira brinca de ser verdade. Era um certo brincar despretensioso, uma desculpa para fazer alguém bancar o bobo.

Penso que esse dia foi criado para nos lembrar da necessidade das perguntas, dos questionamentos, da busca de informações em várias fontes, para não sermos manipulados feito marionetes.

Eu tenho uma convicção, acho a Verdade elegante. Ainda acredito nela, não como a minha verdade, mas aquela que busca retratar a realidade daquilo que acontece.

A Verdade, para mim, se veste de dados históricos, se utiliza dos adornos dos dados estatísticos, das grifes da ciência, e sua palavra enriquece todo tipo de debate de ideias, impõe respeito aos diálogos, especialmente ao debate político, cria credibilidade.

O problema é que, nos últimos tempos, o 1º de abril se tornou uma prática diária, hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo.

A Verdade perdeu seu status, sua elegância. Tem sido ridicularizada, não se baseia mais em métodos ou conclusões científicas, e sim na crença, no modo como cada um vê a realidade que lhe interessa. Virou Geni. Pobre Geni! Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir(…) Maldita Geni!!!

E a Mentira?

Essa, atualmente mudou de nome, ganhou roupa nova, sofisticada, esnobe: fake news.

Mas o que é fake news? Intrigada, fui atrás de desvendar a tal expressão importada.

Tenho mania de pesquisadora, gosto das perguntas; afinal, trabalhei mais de 25 anos no Instituto Brasileiro de Geografia Estatística, o IBGE, órgão responsável pelas informações estatísticas no Brasil, aquela instituição pública que escancara a realidade brasileira, que revela o retrato de suas desigualdades sociais, questões para as quais certos governantes não estão nem aí.

Pois bem: pesquisei, pesquisei, até chegar a uma resposta no artigo “O fenômeno das fake news: definição, combate e contexto”, de Marco Antônio Souza Alves e Emanuella Ribeiro Halfeld Maciel:

Fake news — representa informações de várias vertentes que são apresentadas como reais, mas são claramente falsas, fabricadas, ou exageradas ao ponto em que não mais correspondem à realidade; além do mais, a informação opera no interesse expresso de enganar ou confundir um alvo ou audiência imaginada. Disponível em: https://revista.internetlab.org.br/o-fenomeno-das-fake-news-definicao-combate-e-contexto/

Fake news é o 1º de abril dos que querem confundir e enganar a nós todos, cotidianamente; são informações veiculadas nas redes sociais, nos aplicativos de conversas, tipo whatsApp, dentro outros. Mensagens disparadas em massa para nos confundir. E nós as repassamos, somos marionetes de interesses que nem sequer sabemos quais são.

Tudo isso, para criar narrativas de falsas realidades — de acordo com essas realidades forjadas a que muitas pessoas aderiram na campanha presidencial passada, a terra é plana, kit gay e mamadeira de piroca são distribuídos nas escolas. São inúmeras as histórias criadas para enganar, confundir e manipular eleitores.

O mesmo artigo de autoria de Alves e Maciel me ajudou a entender as razões — que eu já suspeitava, como disse acima — que motivam essa prática.

Via de regra, as fake news encontram seu motor não no desejo de negar a verdade, mas sim na vontade de vencer a disputa a qualquer preço, mesmo que para isso seja preciso falsear a realidade. As pessoas deixam de se perguntar se a notícia é verdadeira ou falsa. Estão ainda menos preocupadas se os fatos estão bem assentados ou se a fonte é confiável. A única coisa que importa é se a notícia favorece sua posição em um contexto polarizado. Assim, produzimos e fazemos circular informações de maneira entrincheirada, usando notícias e manchetes como armas no meio de um campo de batalha. (p.153).

O 1º de abril virou arma no campo de batalha em que se transformou a nossa sociedade!!!

Tem até indústria de fake news, gabinete do ódio, tudo isso junto e misturado, dando origem a uma nova guerra — a guerra híbrida.

Outra novidade, e meu espírito investigativo segue na busca:

A Guerra Híbrida — se refere a um conflito que engloba estratégias e táticas para além de ações militares, como propaganda, difusão de fake news e ciberataques contra adversários políticos. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_H%C3%ADbrida

Tudo isso é assustador, e tem mostrado que as dimensões da credulidade popular em relação às notícias falsas estão longe de apontar para a ingênua brincadeira de 1º de abril, e seus efeitos não são tão desprezíveis como qualquer um de nós poderia imaginar — muito pelo contrário. As consequências são fortes atentados contra os regimes democráticos.

Pensando em como a credulidade popular faz com que as fake news sejam compartilhadas e assimiladas como verdades, me lembrei da personagem maravilhosa do livro A Hora da Estrela, de Clarice Lispector.

Macabéa é uma moça nordestina, alagoana, de 19 anos e pobre. Não tem família e sobrevive com um subemprego de datilógrafa no Rio de Janeiro. Mora numa pensão com outras moças, seu maior prazer é ouvir a Rádio Relógio, onde aprende cultura e curiosidades. Esses aprendizados através do rádio são um meio de que ela se utiliza na tentativa de sustentar seus diálogos com o namorado e orientam a vida da personagem.

Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia, Maria da Penha, ligava bem baixinho para não acordar as outras, ligava invariavelmente para a Rádio Relógio, que dava “hora certa e cultura”, e nenhuma música, só pingava em som gotas que caem – cada gota de minuto que passava. E sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos entre as tais gotas de minuto para dar anúncios comerciais – ela adorava anúncios. Era rádio perfeita pois também entre os pingos do tempo dava curtos ensinamentos dos quais talvez algum dia viesse a precisar saber. Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado Carolus. Verdade que nunca achara modo de aplicar essa informação. Mas nunca se sabe, quem espera sempre alcança. Ouvira também a informação de que o único animal que não cruza com filho era o cavalo.

— Isso, moço, é indecência, disse ela para a rádio.

Outra vez ouvira: “Arrepende-te em Cristo e Ele te dará felicidade”. Então ela se arrependera. Como não sabia bem de quê, arrependia-se toda e de tudo. O pastor também falava que vingança é coisa infernal. Então ela não se vingava.

Sim, quem espera sempre alcança. É?

Tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha. (…)

A Hora da Estrela..

Pelo menos Macabéa, a doce personagem com que Clarice nos brinda nesse livro, não aprendia fake news. Parece que as informações veiculadas na Rádio Relógio, que começavam sempre com a pergunta “Você sabia?” partiam de fontes diversas, sempre verdadeiras, ao que tudo indica.

Imagino as ingênuas Macabéas dos tempos atuais, trocando fake news em seus grupos de whatsApp, em suas redes sociais. Sendo manipuladas, usadas e enganadas. Presas fáceis de uma guerra que nem sabem que existe, a tal da moderna e perversa guerra híbrida.

A ideia do tema do 1º de abril para a crônica deste mês me vem muito a propósito de minha reflexão acerca das consequências desse cenário da denominada guerra híbrida sobre nossa conjuntura nacional, sobre os destinos de nossa democracia, especialmente em um ano de campanha eleitoral com eleição presidencial, quando o nosso direito ao voto será exercido.

Fiquei imaginando: o povo brasileiro, as Macabéas, ou eu, ou você que está lendo esta crônica, como uma marionete sendo manipulada por um ventríloquo, igual ao que vi numa exposição: deixando-se manipular e perdendo o controle de seu destino e de seu direito de voto consciente, com consequências imprevisíveis para você e para os destinos do Brasil.

E pensei: eu não quero ser essa marionete manipulada por ventríloquos.

Você, cara leitora, caro leitor, certamente também não.

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