A solidão vai à praia

A vida em estado de isolamento social é o que a pandemia do coronavírus tem nos imposto há mais de...

A vida em estado de isolamento social é o que a pandemia do coronavírus tem nos imposto há mais de dois anos. Com 70 anos, tenho me mantido muito isolada: de familiares, de amigos; ando praticamente confinada em meu apartamento na Rua das Estrelas. Apesar de já ter tomado as minhas três doses de vacinas. Viva o SUS!

Mas o confinamento prolongado, o noticiário, que dá conta de um cenário desesperador no Brasil, com um governo genocida e fascista, com as várias variantes do vírus a impedir que nossa vida possa fluir como antes têm me levado a um certo desânimo.

Um convite maravilhoso de minha filha surgiu, na tentativa de me ajudar a transpor esses momentos de desesperança: habitar a sua pequenina casa na Região Oceânica de Niterói na passagem para o Ano Novo, em todo o mês de janeiro e em parte do mês de fevereiro. Minha filha passaria todo esse período viajando e eu estaria só, em isolamento, mas juntinho da natureza exuberante no paraíso chamado Praia de Itacoatiara.

Foi então que minha solidão foi à praia.

Certa vez, Rubem Braga definiu a sua solidão: “Eu tenho uma solidão muito cheia”.

E foi assim em Itacoatiara “pedra escrita” ou “pedra riscada”, nome originário do Tupi —, esse recanto originalmente habitado pelos índios Tamoios, que eu senti a minha solidão “muito cheia”.

Banho de mar a minha solidão.

Ir à praia bem cedo, quando o horizonte ainda está encoberto de névoa, e a areia está deserta. Mergulhar na Prainha, na água gelada da manhã, água transparente, salgada e cheia de peixinhos a nadar. Alguns me beliscam dizendo: — Você está viva!

Subir na Pedra do Pampo e meditar, olhando as pedras, a imensidão do mar. Ali me agoro, me sinto presente no aqui e agora. Nada resta além de uma profunda paz!

Depois, caminhar ao longo da areia da Praia até o Costão, chutando os montes de espumas brancas.

Contemplar a Pedra do Costão de baixo para cima nos dá a exata dimensão de nossa insignificância. Da força e da grandeza da natureza, de nossa miudeza e de nossas incompletudes. Ter essa dimensão nos acrescenta para menos, como nos ensinou o poeta Manuel de Barros. Faz de nós um pequenino grão de areia nessa imensidão do Mundo/Mar.

A paisagem vista assim, suavizada pela brisa leve da manhã no mar, se torna etérea e ao mesmo tempo real. O mundo visto por esse olhar imerso na natureza parece mais acolhedor e leve.

Foto: Maria Buzanovsky https://www.instagram.com/fotosdeitacoatiara/?hl=en

Nutro de árvores a minha solidão.

O jasmim-manga, árvore com flores cor-de-rosa que o sol faz cintilar, junto ao portão no jardim, estende aos meus pés um tapete rosado que me convida à leveza do caminhar. À noite, exala seu perfume que inebria e acalenta o sono, os sonhos e os devaneios.

Itacoatiara, com suas ruas todas com nomes de flores, por si só já nos encoraja o caminhar por elas, todas repletas de árvores centenárias.

Tantas árvores se lançam com tenacidade para o alto, cobertas de folhas, com inúmeras flores em suas copas e sustentadas por raízes gigantes. Elas nos convidam a vários e acolhedores abraços.

Foto: Maria Buzanovsky https://www.instagram.com/fotosdeitacoatiara/?hl=en

Minha solidão é nutrida: me alimento dos frutos das pitangueiras, das amoreiras, das mangueiras, dos pés de acerola. Minha solidão torna-se agridoce.

Minha solidão ouve os pássaros e flutua com eles.

Rolinhas, Bem-te-vis, Sabiás, o sol nascendo grande e vermelho, o mar, o movimento vasto das ondas. No final da tarde, os albatrozes ou gaivotas, tão próximas, me fazem companhia, não estou só.

A solidão veste-se do ouroavermelhado do pôr do sol.

Nesta época do ano, em Itacoatiara o sol se põe vermelho, como uma bola de fogo, dentro do mar. Ao mergulhar no mar, sua luz projeta-se em todo o céu, tingindo-o de escarlate. Deixa um rastro caloroso de luz. Inebria o olhar e enche de esperança o porvir.

Foto: Maria Buzanovsky https://www.instagram.com/fotosdeitacoatiara/?hl=en

A minha solidão foi à praia e, cheia de vida, volta para casa, cantando como as cigarras: — Viva a Vida! Viva!

E, como se não bastasse toda a comunhão que a “solidão cheia” do poeta instalou dentro de mim neste início de ano, o auspicioso convite de minha filha me permitiu levar flores em oferenda a Yemanjá no dia 2 de fevereiro, depositá-las nas águas abençoadas do Mar de Itacoatiara, clamando por um Mundo Novo, mais solidário e fraterno!

Odoyá Yemanjá!

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