UFF Responde: conquistas, obstáculo e lutas das trabalhadoras domésticas no Brasil – Diário de Niterói
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UFF Responde: conquistas, obstáculo e lutas das trabalhadoras domésticas no Brasil


Este mês marca dez anos da Lei Complementar nº 150 – a chamada PEC das Domésticas – medida  que regulamenta a atividade profissional das domésticas, com o objetivo de proteger e estabelecer a igualdade para essa classe, mas o que realmente mudou?

No país, são pelo menos seis milhões de pessoas inseridas nos trabalhos domésticos e de cuidado; entre elas, 91% são mulheres. Também é pertinente notar que a maioria é composta por mulheres negras (67,3%) que estão nas condições de informalidade (77%), apontam os dados de 2023 do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).

Em uma década de direitos e deveres estabelecidos, a luta das trabalhadoras domésticas segue em busca de dignidade e visibilidade para os serviços de cuidado, que refletem intrinsecamente as desigualdades de gênero, raça e classes sociais no país. Para compreender mais a respeito dos fatores que permeiam a discussão, conversamos com as professoras do departamento de Economia e de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), Hildete Pereira e Maria Cristina Paulo Rodrigues.

Qual o contexto histórico por trás do surgimento da PEC das domésticas?

Hildete Pereira: Já mapeamos anteriormente e constatamos que o trabalho doméstico existe desde muito tempo na vida humana. Estava na etapa do Brasil colônia, no Império, na República e também está presente nas outras sociedades. O serviço doméstico aparece o tempo inteiro na literatura mundial. Antes, havia escravos e servos, depois da abolição, surgiram as trabalhadoras domésticas, que ficaram décadas trabalhando sem ter os mesmos direitos que outros trabalhadores, principalmente por realizarem o “trabalho de cuidado” que não era pago.

Maria Cristina Rodrigues: A PEC das domésticas é resultado de um longo processo de reivindicações. A Constituição de 1988 é considerada um avanço no que se refere aos direitos sociais, mas o grupo das trabalhadoras domésticas não foi colocado no mesmo nível de reconhecimento e proteção que outras categorias profissionais. Se olharmos para trás, em 1943 foram consolidadas as leis do trabalho, a CLT, no governo de Getúlio Vargas, mas o trabalho doméstico e o trabalho rural ficaram de fora. Em 88 foram garantidos os direitos de salário mínimo fixo, descanso semanal remunerado, licença maternidade de 120 dias, férias de 30 dias com acréscimo de um terço do salário mínimo, aposentadoria e 13º. Ainda assim, faltava reconhecimento dessa categoria profissional, então surgiu a Lei Complementar 150, em 2015, que estabeleceu uma lógica mais igualitária.

Qual a importância de ter uma legislação específica para regulamentar esse trabalho no Brasil?

Hildete Pereira: Existe um estudo que, em uma equação matemática, conseguiu determinar que o PIB brasileiro cresceria 13% se o trabalho não pago de cuidado fosse contabilizado. Os homens declaram 11 horas semanais de trabalho doméstico, enquanto as mulheres, hoje em dia, declaram em torno de 20 horas. Esses aspectos melhoram e já estão melhores do que no passado, mas, ainda assim, as empregadas domésticas ainda enfrentam desafios e as legislações tentam mudar esse cenário.

Maria Cristina Rodrigues: O trabalho doméstico no Brasil não tem reconhecimento econômico. Como é uma função realizada no âmbito privado, dentro das casas, e majoritariamente por mulheres, ele ainda continua com uma marca de ser menos valorizado do que o trabalho produtivo de outros setores. A importância da implementação da lei é de desvelar essas relações de desigualdades, que passam além das relações de gênero, mas também pelas questões raciais.

Em 12 anos da PEC e 10 anos da implementação da lei, quais foram os avanços mais significativos para esse grupo?

Maria Cristina Rodrigues: Infelizmente, antes se ouvia dizer que a PEC das domésticas traria problemas para as trabalhadoras, porque os patrões iriam preferir contratar diaristas para não aumentar o custo. Mas o que vemos hoje, apesar da informalidade presente nessa área, é que a lei complementar trouxe mudanças positivas para as trabalhadoras domésticas como o FGTS, o acesso à justiça do trabalho, a proteção contra a despedida arbitrária, o seguro desemprego, a remuneração do trabalho noturno superior ao diurno, o salário família, adicional de hora extra, creche para os filhos, a possibilidade de acordos e convenção coletiva, seguro contra acidentes de trabalho, entre outros. Os estudos mostram que, efetivamente, houve um impacto grande na jornada de trabalho delimitada em 8 horas diárias, por exemplo. Considerando o processo histórico de formação da sociedade brasileira, que é sustentada sobre a desigualdade, essas mudanças são muito importantes.

Hildete Pereira: Hoje em dia, as domésticas não estão no mesmo contexto do passado. Antes, os patrões defendiam que elas pertenciam à família, mas se notarmos os apartamentos, já sabemos que o quarto de empregada era o mais apertado, por exemplo. Além dos direitos conquistados com luta, as relações de trabalho também mudam de acordo com o passar dos anos, como o reconhecimento do sindicato das trabalhadoras domésticas que, apesar de existir há muitos anos, só foi reconhecido com a PEC.

Trabalhadora doméstica em Copacabana, observando a III Marcha das Mulheres Negras no Centro do Mundo, em 2017. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Rio de Janeiro, 30/07/2017 – III Marcha das Mulheres Negras no Centro do Mundo. Mulheres marcham em Copacabana para celebrar dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha e em defesa dos direitos das mulheres negras. (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Desde 2013 até hoje, esse setor é composto em sua maioria por mulheres negras e com baixa escolaridade (63,5% não têm o Ensino Médio completo). O que esses números significam em relação às desigualdades estruturais de gênero, raça e classe no Brasil?

Maria Cristina Rodrigues: No caso do trabalho doméstico remunerado, existe uma relação direta com a formação escravocrata do Brasil. Não é um resquício da herança escravista, mas, sim, a marca escravista nas relações de trabalho. Os dados de que as mulheres têm mais horas de trabalho em casa do que os homens tem um custo para a vida delas, é o que impede de cada vez mais mulheres ocuparem outros espaços como a política, ter mais tempo de lazer, descanso e estudos. A sobrecarga da dupla ou tripla jornada das mulheres também aparece como uma justificativa para deixar mais informal a participação delas no mercado de trabalho e demonstram as marcas de desigualdade no país.

Hildete Pereira: As condições de trabalho no passado mostram que o estatuto da mulher foi construído de forma desigual para consagrar a superioridade dos homens. A partir de 1991, a escolaridade feminina se tornou maior do que a dos homens, e isso é uma conquista, porque, séculos atrás, 80% das mulheres brasileiras eram analfabetas. Apesar disso, a classe das domésticas ainda enfrenta os desafios justamente por ser um trabalho de mulher, principalmente das racializadas e menos abastadas.

As pesquisas da PNAD mostram que 3 a cada 4 trabalhadoras domésticas não têm carteira de trabalho assinada. Por que a formalização da categoria continua sendo um obstáculo tão grande, mesmo após 10 anos?

Maria Cristina Rodrigues: Mesmo antes da PEC, já havia uma tendência de “diarização” do trabalho doméstico e isso surge da desvalorização desse serviço e também do trabalho de cuidados, muitas vezes associados a divisão sexual e racial do trabalho de mulheres. Outro ponto é que após a implementação da lei, logo em seguida o país passou por um cenário político e econômico muito dramático, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. No governo Temer pelo menos duas medidas atingiram fortemente as relações e condições de trabalho no Brasil: a PEC do teto de gastos, que impôs um limite de gastos durante 20 anos para as políticas sociais, e a aprovação da reforma trabalhista. Em 2018, já com Bolsonaro, houve a lei da terceirização e em 2019 a aprovação da reforma da previdência, além da pandemia de covid-19 em 2020. Todos esses fatores tiveram impactos sobre o trabalho e a categoria das domésticas também foi muito afetada. Isso mostra que, em momento de crise, os grupos sociais mais vulneráveis sofrem ainda mais, mas tenho esperanças de melhora, porque sempre há luta. Não há direito social nenhum que não seja resultado da luta e resistência dos trabalhadores.

Outro fator é que a classe de domésticas está envelhecendo, ou seja, as mulheres jovens estão buscando outros caminhos profissionais e também nos estudos. Como se pode analisar a mudança geracional no trabalho doméstico?

Maria Cristina Rodrigues: O envelhecimento dessa classe é uma ambiguidade. Um elemento interessante que justifica esse fator são as políticas públicas adotadas pelo Brasil nas últimas décadas, principalmente a política de cotas nas universidades públicas. Isso contribuiu para a entrada de mulheres negras jovens que historicamente foram colocadas à margem do direito à educação. Vemos muitas famílias que passam o trabalho doméstico de geração em geração, porém, devido às políticas afirmativas, esse cenário muda. Por outro lado, a saída das mulheres jovens desse trabalho não necessariamente significa que outros empregos lhe garantirão mais formalidades ou melhores condições de trabalho. Não dá para desconsiderar que a juventude tem sido um grupo profundamente afetado pela precarização, flexibilização dos direitos e pela chamada plataformização do trabalho na atualidade.

Maria Izabel Monteiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Rio de Janeiro. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Maria Izabel Monteiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Rio de Janeiro. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Quais caminhos, programas ou políticas públicas são essenciais para combater o cenário de desvalorização, informalidade e garantir mais dignidade e proteção às domésticas?

Maria Cristina Rodrigues: Tem crescido no Brasil nos últimos anos uma discussão em torno da política nacional de cuidados e que deve ser discutida junto ao cumprimento da lei complementar 150. Esse é um desafio imenso, porque vai no contrafluxo das políticas neoliberais que predominam no país e no mundo a partir dos anos 90. A lei que protege as trabalhadoras domésticas está ligada ao enfrentamento de medidas que foram aprovadas pela reforma trabalhista e que, na verdade, prejudicam o trabalhador e também fragilizam a justiça do trabalho. Também são importantes ações educativas que, desde cedo, mostram às novas gerações a capacidade de uma sociedade mais equitativa. E adotar medidas de cuidado, como ampliar a licença paternidade, mais creches, pré-escolas, escolas em tempo integral, restaurantes comunitários, lavanderias coletivas, e mais itens que surgem como propostas nas últimas décadas e que, apesar de não serem tratados como políticas a serem verdadeiramente incorporadas, podem auxiliar o dia a dia das mulheres com trabalhos de cuidado.

Hildete Pereira: No que diz respeito aos avanços para as trabalhadoras domésticas, eles foram enquadrados na PEC e estão garantidos, mas o problema é a execução das leis e a força política para que isso aconteça. É importante que esse tema e também outras questões que passam pela desigualdade estejam em pauta nas lutas políticas. É preciso educar as crianças desde cedo sobre as responsabilidades em casa, discutir sobre a igualdade de gênero nesse contexto e ir contra a ideia consumada de que o trabalho doméstico e de cuidado é apenas de mulheres.

Maria Cristina Paulo Rodrigues é professora do departamento de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). É doutora em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Educação e graduada em Serviço Social pela UFF.  Atualmente é coordenadora do Neddate (Núcleo de Estudos, Documentação e Dados e Trabalho-Educação), da FEUFF, e integra o TEIA (Grupo de pesquisa e extensão em Trabalho, Educação e Serviço Social).

Hildete Pereira de Melo é professora do departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). É doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia e mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em Desenvolvimento Econômico pela Université de Toulouse (França) e graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFP). É também docente do Programa de Pós-graduação em Política Social e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Gênero e Economia da UFF.

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