UFF Responde: Férias escolares x entretenimento – Diário de Niterói
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UFF Responde: Férias escolares x entretenimento


O mês de julho é marcado pelo início do período das férias escolares. A pausa no ano letivo permite que os alunos tenham um descanso da rotina de aulas, mas também resgata um desafio enfrentado por pais, tutores e parentes: como preencher o tempo livre com atividades que sejam divertidas e enriquecedoras para o aprendizado? 

O entretenimento é essencial para o desenvolvimento da criatividade, do senso de curiosidade e de habilidades cognitivas da criança durante esse tempo longe de sala. No entanto, o aumento do tempo de uso de telas, como celulares, tablets e televisão durante as férias se torna uma preocupação. Apesar da tecnologia oferecer diversas vantagens, o uso excessivo pode provocar efeitos negativos, como a dificuldade de concentração, a diminuição das interações sociais e o sedentarismo. 

Iniciativas como a da Casa da Descoberta da Universidade Federal Fluminense (UFF), que reúne mais de 50 experimentos interativos nas áreas de Astronomia, Física, Química, Biologia e Matemática, recebendo visitantes de todas as idades — especialmente alunos de escolas públicas e particulares da região, tornam-se alternativa de programa para unir diversão e conhecimento. Em julho, o espaço também promove uma colônia de férias com atividades lúdico-científicas, guiadas por monitores que incentivam a participação ativa das crianças e a descoberta espontânea de conceitos científicos.

Nesta edição do UFF Responde, conversamos com a Professora da Faculdade de Educação e Coordenadora do Laboratório de Brinquedos da UFF, Andréa Serpa Albuquerque, e com a diretora da Casa da Descoberta e Professora do Instituto de Física da UFF, Érica Cristina Nogueira, para trazer dicas de atividades no período de recesso e entender como brincadeiras lúdicas podem contribuir para o desenvolvimento infantil e para a redução do uso excessivo de telas.

Qual a importância do brincar durante o período das férias escolares, especialmente para crianças em fase de alfabetização?

Andréa Serpa: O brincar é fundamental em todo tempo e fase da vida da criança. Apesar de muito subestimado, o brincar é inerente à natureza, todos os filhotes de mamíferos brincam e isso tem uma função. É brincando que a criança se desenvolve fisicamente, socialmente e psiquicamente. E o contrário também é verdadeiro: a ausência do brincar, atrofia o desenvolvimento da criança, e esses três aspectos: o físico, o social e o psíquico são fundamentais para o desenvolvimento cognitivo. Especialistas indicam que o brincar livre e o desenho são a primeira etapa para o desenvolvimento da escrita. Brincando e desenhando a criança constrói o conceito do jogo simbólico, necessário à construção da escrita.

Como a linguagem acessível e a interatividade contribuem para o aprendizado de conceitos científicos nas férias?

Érica Nogueira: O uso de uma linguagem acessível, ou seja, a tradução do conhecimento científico para que o participante possa compreender o que estamos falando, é extremamente importante. Explicar os termos técnicos utilizados pelos cientistas faz com que os participantes entendam que a ciência pode ser feita por qualquer pessoa. Não é necessário ter um super poder ou um super conhecimento para ser cientista. É importante ter curiosidade e muita vontade de aprender. 

Já a interatividade, o realizar a experiência, por sua vez, ajuda a estimular a curiosidade de todos e a entender conceitos científicos que, algumas vezes, são bastante abstratos. 

Os dois juntos, a linguagem acessível e a interatividade, deixam o aprendizado mais dinâmico e divertido. E é isso que a gente quer nas férias: nos divertir enquanto descobrimos e aprendemos coisas novas.

O uso prolongado de telas costuma aumentar durante as férias. Quais os riscos e efeitos desse hábito no desenvolvimento infantil?

Andréa Serpa: Infelizmente as famílias estão ignorando os alertas de psicólogos, pedagogos e pediatras: a exposição às telas adoece o cérebro infantil. O vício em tela causa uma dependência semelhante ao vício da heroína. Nossa sociedade abandonou as infâncias na frente das telas por comodidade, mas essa negligência tem um custo. Além da exposição a um ambiente extremamente perigoso com mínima supervisão, o uso contínuo de telas tem prejudicado os ciclos de sono, atenção à alimentação, o desenvolvimento físico/motor, psíquico/social e produzido sérias alterações de comportamento que tanto prejudicam o desempenho escolar. 

Ou seja, temos uma contradição: os mesmos que se preocupam com a “produtividade acadêmica” de seus filhos, contribuem para o fracasso escolar (e dificuldades em outros aspectos da vida do filho) porque não conseguem impor limites às telas, uma vez que, muitas vezes, também já estão viciados. Muitos dos “transtornos” que levam as crianças aos psicólogos e psiquiatras (e a medicalização precoce) não são inatos, foram socialmente produzidos pela forma como o mundo vem enlouquecendo as crianças: privam elas do livre brincar, das relações reais, e as abandonam na frente das telas. A consequência? Cérebros inflamados, hiperativados, exaustos com tantos estímulos sonoros e visuais. E é assim que criamos uma geração “tarja preta”.

As crianças não estão com ‘déficit de tecnologia’. Estão com déficit de natureza, de leitura, de brincadeiras, de diálogos e relações. Então penso, que se eu tivesse que escolher “investir” um tempo de qualidade com as crianças, seria longe das telas.

Isso nos leva a outra questão. Muitas vezes o tempo livre acaba sendo preenchido com atividades escolares extras, como reforços ou cursinhos. Que cuidados devem ser tomados para que as férias não se tornem uma extensão da escola?

Andréa Serpa: Temos que parar de tratar as crianças como se fossem uma espécie de “investimento no mercado futuro”. Elas não são mini-profissionais em treinamento, são crianças. É preciso compreender a importância de se viver plenamente essa fase da vida sem tanta pressa e neurose, porque estão – literalmente – adoecendo nossas crianças. Depressão, ansiedade, e outros transtornos causados pela obsessão de certas famílias por “produtividade”, “performance”. Descanso é fundamental para o aprendizado. Um cérebro exausto, cansado aprende menos, e não mais. Uma criança sobrecarregada e sem direito a um período de descanso vai – como qualquer ser humano – colapsar.

Como as famílias podem equilibrar momentos de lazer, descanso e aprendizado durante esse período?

Andréa Serpa: Primeiro é preciso refazer nosso conceito de Educação. Não nos educamos apenas na escola. A escola escolariza e isso já é garantido nos períodos letivos. Mas a arte nos educa, a natureza nos educa, o brincar nos educa. Visitar museus, ir ao cinema, ir ao teatro, aprender a apreciar uma música, um quadro, uma escultura educa. Cozinhar com a mãe, aprender a costurar, ou pintar, ajudar nas tarefas da casa nos educa. Educa os sentidos, educa a capacidade de concentração e atenção aos detalhes, autonomia, responsabilidade. 

Brincar ensina a criança sobre os limites e possibilidades de seu corpo, desenvolve os sentidos, a coordenação motora, as sociabilidades e o respeito às regras. Temos que parar de compreender “lazer” e “descanso” em oposição ao aprendizado. A neurociência nos ensina que é na hora do descanso que o nosso cérebro realmente processa os aprendizados do dia. Lazer e descanso educam e curam as crianças de tanta ansiedade e hiperatividade.

Qual a importância de espaços como a Casa da Descoberta para preencher as lacunas do ensino formal e estimular o gosto pela ciência desde a infância?

Érica Nogueira: Nas escolas, os estudantes devem ser estimulados a comparar suas vivências cotidianas com o ensinado em sala de aula e, com o auxílio do professor, trabalhar conceitos do senso comum sob a visão das concepções científicas. Um dos lugares onde isso pode acontecer são os Laboratórios Didáticos de Ciências, afinal, eles permitem aos alunos e professores cruzarem a ponte entre teoria e prática. No entanto, a ausência de laboratórios na maioria das escolas faz com que a relação entre teoria e prática fique sempre em segundo plano. Nos grandes centros, a falta de laboratório é amenizada com a possibilidade dos alunos visitarem os museus  de ciências. 

Acreditamos que os museus de ciências devem ser um lugar interativo, funcionar menos como um templo e mais como um fórum, um lugar de encontro, de troca e por que não, de admiração das belezas da natureza e dos avanços tecnológicos. 

Com este olhar, na Casa da Descoberta, buscamos despertar a curiosidade, promover a descoberta, o encantamento  e estimular a imaginação dos nossos visitantes.

A Casa da Descoberta promove uma colônia de férias com atividades científicas. Que tipo de experiências são oferecidas às crianças durante esse período?

Érica Nogueira: Os participantes, sob a orientação da nossa equipe, são estimulados a realizarem experiências do tipo “faça você mesmo” enquanto discutimos a ciência existente em cada experimento. Os experimentos podem ser da área da Física, da Química ou da Astronomia. Na Colônia de Férias que teremos agora em julho também contaremos com a participação de parceiros muito especiais que trarão atividades lúdicas e divertidas onde os participantes utilizarão microscópios e terão contatos com conceitos de outras áreas como veterinária e biologia, por exemplo. 

De que forma o entretenimento pode contribuir para o aprendizado, mesmo fora do ambiente escolar?

Andréa Serpa: Quando você lê um livro, vê um filme, uma peça de teatro, um desenho e conversa sobre ele é um exercício de interpretação. Você faz uma apreciação estética, você analisa comportamentos, relações. Ou seja, o que chamamos de entretenimento na verdade é um espelho onde a humanidade projeta seus valores, seus medos, seus sonhos, seus ideais. Conversar com as crianças sobre o que estão vendo, ouvindo, sentindo, além de criar laços de confiança, permite que ela desenvolva a capacidade argumentativa, aprenda a ouvir e aprenda a se expressar. 

Quando ela corre, pula, joga, está desenvolvendo em seu cérebro habilidades necessárias à vida. Quantos adultos hoje conhecemos com dificuldades de mobilidade e coordenação motora, espacialidade, equilíbrio? Quantos adultos têm dificuldade de comunicação? Crianças que antigamente corriam pique, jogavam futebol, queimada e bandeirinha não tiveram dificuldade de aprender a dirigir, por exemplo. Ou lidar com mapas e ler o GPS.

Que tipo de impacto  as atividades promovidas, como observações do céu e oficinas temáticas, costumam causar nas crianças?

Érica Nogueira: Elas ficam maravilhadas por vivenciarem a ciência de uma forma diferente da que estão acostumadas. Uma vez, recebemos o depoimento de uma menina de 12 anos que nos contou que tinha decidido se tornar cientista depois de ter participado das atividades da Casa da Descoberta. Também temos casos de crianças  que visitam o museu com a escola e, quando passam a estudar na  UFF, nos procuram para trabalhar como mediadores por conta das boas recordações que possuem. 

Quais práticas vocês consideram mais eficazes para estimular a imaginação e o interesse das crianças, especialmente quando elas têm a oportunidade de criar, experimentar e interagir, em vez de apenas consumir conteúdos digitais?

Érica Nogueira: O uso de tecnologia é importante para visualizar e entender conteúdos mais abstratos, perigosos e difíceis de serem reproduzidos no dia-a-dia. Mas existem situações que, quando vistas apenas através das telas, não estimulam a criatividade e o aprendizado. 

Por exemplo, nós não podemos visitar uma usina nuclear. Neste caso, a tecnologia nos auxilia ao permitir que façamos uma visita virtual neste ambiente. Agora, se eu quero compreender como funciona um circuito elétrico para entender como é que eu aperto o interruptor e a lâmpada acende é bem mais interessante construir o circuito elétrico do que visualizar isso num vídeo. E é este fazer, este descobrir que traz desafios aos participantes fazendo com que seus olhos brilhem. 

Andréa Serpa: A palavra “engenharia” é um derivado de “engenho”. E o que é a engenhosidade humana? A capacidade de criar alguma coisa com elementos aleatórios. A principal atividade que desenvolve isso é exatamente o brincar. E quando convidamos as crianças a “criarem” os próprios brinquedos a partir de materiais não estruturados favorecemos essa criação, essa engenhosidade. 

Então a melhor atividade, a mais potente, é criar com sucatas (potes, latas, tecidos, tampinhas, palitinhos etc) com elementos de natureza: folhas mortas, gravetos, terra, argila, caquinhos, sementes etc. Assim como o desenho, pintura – livres e não “modelos prontos” – e ouvir histórias estimulam toda essa imaginação e são essenciais para o desenvolvimento de uma pessoa capaz de desenvolver todo seu engenho: a capacidade de dar soluções criativas para quaisquer problemas.

Andréa Serpa Albuquerque possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e Mestrado em Educação (2006) e Doutorado em Educação pela Universidade Federal Fluminense(2010). Atualmente é Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense/Niterói onde desenvolve e participa de projetos de ensino, pesquisa e extensão no Campos de Estudos do Cotidiano Escolar, com ênfase em Alfabetização, Avaliação, Currículo e Formação de Professores, na graduação e pós graduação. Organizou e atua como Coordenadora do Laboratório de Brinquedos da Faculdade de Educação, onde orienta projetos de pesquisa, ensino e extensão sobre o Brincar. Desenvolve o projeto de extensão: Contar & Encantar: a formação do(a) professor(a) encantador(a) de histórias e Brincantes: a formação do(a) professor(a) que brinca.


Érica Cristina Nogueira possui graduação em Licenciatura em Física pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (2001), mestrado em Física pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (2003), doutorado em Física pelo Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008). Atualmente é professora associada da Universidade Federal Fluminense. Tem experiência na área de Astronomia, com ênfase em Astronomia Dinâmica, tendo atuado principalmente nos seguintes temas: formação e evolução do Sistema Solar, migração planetária, controle orbital e vigilância espacial. Também possui experiência em Ensino de Física e Astronomia, atuando na área de educação inclusiva, formação continuada e popularização da ciência. Desde janeiro de 2020 é diretora da Casa da Descoberta – o Centro de Divulgação Científica da Universidade Federal Fluminense.

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