Atualidades UFF: entenda o conflito entre Índia e Paquistão
A Índia e o Paquistão voltaram a protagonizar tensões militares, em episódios que reacendem um dos conflitos territoriais mais sensíveis do planeta. No entanto, no último sábado (10), as potências nucleares assinaram um acordo de cessar-fogo imediato após a morte de, pelo menos, 72 vítimas. Sob mediação dos Estados Unidos, os dois países concordaram em paralisar as ações mutuamente devastadoras e reabrir os espaços terrestres e aéreos.
Meses de conflito e tensão
Os ataques começaram em 22 de abril, em Pahalgam, cidade turística na Caxemira, que deixou pelo menos 26 civis mortos. Segundo as autoridades indianas, a ofensiva feita na parte da região administrada pelo país foi fruto de terroristas separatistas apoiados pelo Paquistão, que detém a outra metade do território. Por outro lado, apesar de o governo paquistanês negar a participação no atentado, medidas de guerra tomaram conta da parte sul da Ásia. Em 7 de maio, a Índia deu início à Operação Sindoor, com ataques aéreos em pelo menos nove locais no Paquistão, sob a justificativa de que atingiam infraestruturas terroristas. Até o momento mais de 50 paquistaneses e 21 indianos foram vítimas das ações militares transfronteiriças.
“Esse atentado foi atribuído à Frente de Resistência, um grupo ligado ao Lashkar-e-Taiba (LeT) e Jaish-e-Mohammed (JM) – grupos extremistas considerados terroristas pela Índia e pela Organização das Nações Unidas (ONU). A reação do Paquistão, por sua vez, consistiu em ataques aéreos com drones e mísseis apontados para as instalações militares indianas, como Jammu e Amritsar, além da guerra cibernética”, explica Eduardo Heleno, professor do Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Mesmo com o cessar-fogo, os dois países ainda se acusam de violações. No mesmo dia em que foi celebrado o acordo, explosões foram ouvidas no local do conflito. Vikram Misri, Secretário de Relações Exteriores da Índia, afirmou que houve repetidos descumprimentos dos tratos, enquanto o Ministério das Relações Exteriores do Paquistão garantiu o comprometimento com a determinação, “apesar das violações indianas cometidas em algumas áreas”.
“No contexto da recente ampliação da intervenção indiana na Caxemira, os ataques iniciados em abril reforçam a política de Narendra Modi, o primeiro-ministro da Índia, em relação à região”, reforça Heleno. “Esse episódio parece ser diferente das tensões anteriores por um aspecto: a suspensão feita pelo governo indiano do Tratado das Águas do Indo, vigente desde a década de 1960, o que afeta o abastecimento de água do Paquistão”, complementa o professor.

Casa atingida em Islamabad, região da Caxemira administrada pela Índia. Foto: Reuters
Alerta nuclear e impactos sociais
Segundo Heleno, a Índia e o Paquistão conferem tanta importância à região da Caxemira devido aos recursos que ela disponibiliza, neste caso, a água. Ambos os países estão sob estresse hídrico e o acesso à água é vital para a sobrevivência dos mais de 1,6 bilhão de habitantes nos dois lugares. “Além da questão dos recursos, há também a questão da identidade paquistanesa e indiana e sua relação com o território da Caxemira”, destaca.
As retaliações bilaterais são consideradas as piores em 20 anos e acontecem em uma área muito sensível no planeta, próxima às cordilheiras do Himalaia, onde as duas potências nucleares fazem fronteira com uma terceira, a China. O que preocupa todo o mundo é o fato de que todas essas nações detêm armamentos nucleares, que significam um risco mundial de segurança.

Shehbaz Sharif, primeiro-ministro do Paquistão, e Narendra Modi, da Índia. Foto: The Quint
“A doutrina indiana não prescreve o uso de armas nucleares em um primeiro momento, mas prevê ataques maciços em resposta ao Paquistão. A doutrina paquistanesa é ambígua, de dissuasão gradual, devido ao fato de o país ser menos poderoso militarmente”, apresenta o internacionalista. No entanto, a possibilidade de uso do arsenal nuclear limita uma escalada militar – ou seja, os dois lados reduzem as hostilidades, com a intenção principal de evitar maiores conflitos e iniciar a chamada Destruição Mútua Assegurada.
Mesmo com a suspensão de equipamentos nucleares, os riscos para os civis são grandes. Heleno expõe que a rivalidade indo-paquistanesa “tem um aspecto estatal, com o uso das forças regulares, e outro não estatal, que envolve grupos terroristas e paramilitares nos dois países”. Com isso, a população sul-asiática sofre as consequências das estratégias adotadas para tentar reduzir o avanço de tais grupos.
Nos últimos dias, os bombardeios e disputas armadas não foram as únicas táticas usadas. “Ainda há muita especulação sobre a eficácia desses ataques, mas uma vez confirmados, esses alvos revelam mais sobre a doutrina de operações do que da grande estratégia desses países. Nos conflitos contemporâneos, seja na Síria ou na Ucrânia, ou no sul do Líbano, tem sido observado o ataque indiscriminado a populações civis, sob a justificativa de serem áreas de atuação dos insurgentes”, aponta Heleno.
Além de impedir o acesso à água, o Paquistão e a Índia articularam cortes de energia e fechamento de espaço aéreo e das fronteiras. Os apagões totais, por exemplo, são uma maneira de defesa e precaução contra o avanço de tropas militares. Há, também, os ciberataques paquistaneses, que impactam diretamente em estruturas no país vizinho, como o sistema operacional da malha ferroviária, da geração de energia e servidores de internet e, claro, a comunicação. Para o professor, “isso mostra que as guerras na atualidade cobram um tributo caro para a população civil, que tem sido muito afetada”.

Mulher em frente a casa destruída em Islamabad. Foto: Sajjad Hussain/AFP/Getty Images
Caxemira: uma herança colonial
É impossível analisar o conflito sem retomar os aspectos histórico e religioso da região. “A longo prazo, as estratégias de guerra servem para instigar o ódio religioso, pois ressaltam o trauma da partilha da Índia, em que grandes populações hindus e muçulmanas foram deslocadas para os novos estados. O estado de violência pode acirrar ainda mais os grupos radicais nesses dois países, aí podemos incluir os grupos separatistas dentro da Índia, como os sikhs, os tamis e os naxalitas. A proliferação de atentados como os de abril, por envolver a questão religiosa, muda drasticamente a dinâmica do conflito, ampliando a intolerância e estendendo a instumentalização do ódio”, contextualiza o especialista em Relações Internacionais.
A área dividida entre a Índia e o Paquistão é considerada uma das mais sensíveis do mundo desde o século passado. Com a saída da Grã-Bretanha do território indo-paquistanês, em 1947, as disputas de dominação se acirraram ainda mais. Desde então, já surgiram outras três grandes guerras entre os países sul-asiáticos: em 1965, em 1971 e em 1999, além de outras situações menos intensas. Para adiante das questões físicas, os conflitos também atravessam questões com raízes religiosas. No momento em que a Caxemira foi dividida em duas porções, a maioria da população hindu se deslocou para a parte indiana e a maioria ligada ao islamismo, para a parte paquistanesa.

Mapa da região da Caxemira. Foto: BBC
Timo Bartholl, professor de Geopolítica e Blocos Mundiais de Poder na UFF, explica que a colonização britânica tem fortes vínculos com os conflitos. “Quando são retiradas as forças coloniais, as regiões deixadas se tornam muito instáveis e as potências dominantes ainda mantêm influência sobre as decisões. Isso é continuação da colonialidade e quem mais sofre nessas guerras são as classes dominadas e exploradas”.
Eduardo Heleno ressalta que a política externa indiana tem contribuído para a escalada das tensões. “Nos últimos anos, o governo de Narendra Modi, do partido Nacionalista Hindu (BJP), tem diminuído o grau de autonomia da Caxemira, incentivando a intervenção federal direta, a ampliação das forças militares e paramilitares, a migração de hindus para a região de maioria muçulmana e por fim as operações de incursão em território paquistanês, medidas que acabam servindo de propaganda do nacionalismo radical hindu. Tudo isso se dá em um contexto no qual o poder militar indiano se mostra muito superior ao do Paquistão”.
Apesar de ser uma questão regional alimentada por décadas de embate, as consequências são mundiais. “Cada um dos governos, seja da Índia ou do Paquistão, passou a clamar pelo direito de gerir integralmente o território dividido. Essa dinâmica afeta fortemente a aliança dos blocos globais de poder”, explica Bartholl.
Relações mundiais de poder e blocos econômicos
A Índia faz parte de diversos grupos de destaque, como o BRICS, formado também pelo Brasil, Rússia, China e África do Sul, o G20, que reúne economias desenvolvidas e em desenvolvimento, e o APEC, o Foro de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, com 21 países membros. Assim, as disputas indianas reverberam para além do contexto interno.
A posição internacional reflete em diversos pontos. No acordo de cessar-fogo, por exemplo, o governo indiano não deu crédito à iniciativa dos EUA e reforçou que a narrativa de que o entendimento ocorreu entre as duas nações apenas, uma vez que o conflito é uma questão bilateral e de longa data. Já as lideranças paquistanesas agradeceram o apoio estadunidense para a promoção da paz na região.
“Esse não alinhamento da Índia caracteriza a sua política externa e a condução de sua relação com o Paquistão. Da mesma maneira que a Índia descarta o papel dos Estados Unidos, ela descarta o papel da Missão das Nações Unidas na mediação, ou de qualquer outro ator”, explica Heleno.
Para Bartholl, a postura da Índia enfraquece o país frente à comunidade internacional, por mostrar a incapacidade de resolver os próprios momentos de tensão. “Quando há uma resolução diplomática, melhor e mais estável é a resolução de guerras assim. Porém, pode-se dizer que, diplomaticamente, a Índia saiu pior do que o Paquistão, por ser um país poderoso saindo “recuado” de um conflito como esse”.
De acordo com as análises do professor de geografia, esse momento também é significativo para os Estados Unidos, principalmente durante a segunda gestão do presidente Donald Trump, que tenta reafirmar sua liderança internacional. “Ele quer manter a imagem da força global dos EUA e demonstrar para o mundo como um grande negociador. Isso se reforça ainda mais quando ele consegue se colocar em discussões internacionais e fazer parecer que o sucesso delas foi de sua responsabilidade.”
Além disso, Heleno esclarece que os alinhamentos internacionais nessa região são extremamente dinâmicos: “durante a Guerra Fria, em especial após 1965, houve um afastamento da Índia em relação aos Estados Unidos. A situação mudou um pouco a partir dos anos 2000. Nos últimos 15 anos, a Índia tem importado mais equipamentos militares de países como a França e Estados Unidos e cada vez menos da Rússia”.
Ao mesmo tempo, o Paquistão também passou de forte aliado dos EUA durante a Guerra Fria até a Guerra do Afeganistão, mas logo se aproximou da China, devido ao desinteresse estadunidense pela aliança. “Há mais possibilidades de cooperação do que a escolha por uma guerra entre esses dois países. Um envolvimento direto da China e dos Estados Unidos traria quatro atores com armas nucleares ao teatro de operações, o que não interessa a nenhum deles. Apesar da situação conflituosa, a tendência são os movimentos em torno da paz”.

Exército indiano. Foto: Freepik
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Eduardo Heleno de Jesus Santos é doutor em Ciência Política (2015), Mestre em Ciência Política (2009) e jornalista (2006) formado pela Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto do Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense. Coordenador do Curso de Pós Graduação Lato Sensu (MBA – Especialização) em Estudos Estratégicos e Relações Internacionais. Integrante da Rede de Segurança e Defesa da América Latina (Resdal), com sede em Buenos Aires, do Núcleo de Estudos Estratégicos Avançados do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (NEA/INEST-UFF) e do Laboratório de Estudos sobre Política Externa (LEPEB). Investigador associado da rede de pesquisadores Direitas, História e Memória. Pesquisador do grupo Democracia , Militares e a Esquerda Militar, da UNESP-Marília. Integrante da Rede de Pesquisa sobre Missões de Paz (REBRAPAZ).
Timo Bartholl é formado em “Geografia dos Países em Desenvolvimento com Foco na América Latina” pela Universidade Eberhard-Karls de Tübingen, Alemanha (2006). Desde 2019 atua como Professor Adjunto no Departamento de Geografia da UFF/Niterói. Leciona com focos em Geografia Regional e Geografia dos Blocos Mundiais de Poder e desenvolve Geografias em movimento(s): Geografias dos movimentos sociais e das dinâmicas territoriais nas periferias urbanas e métodos de pesquisa-ação comunitária. Na interface movimento social/universidade atua nas linhas temáticas “favelas como territórios de resistência – trabalho de base – coletivismo econômico – soberania alimentar e agroecologia”.
Por Letícia Souza
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