Diversidade, inclusão e acesso à saúde: ambulatório da UFF acolhe a população LGBTQIAP+
Junho é o mês internacional do orgulho LGBTQIAP+. A data surgiu neste mesmo mês, no dia 28, em 1969, quando a chamada Rebelião de Stonewall, nos Estados Unidos, reuniu gays, lésbicas, travestis, transsexuais e drag queens para a luta a favor de seus direitos. O marco zero do movimento é uma data que relembra a vida de ícones da comunidade, reivindica direitos e promove a igualdade ao redor do mundo. Na Universidade Federal Fluminense (UFF), um novo serviço de saúde está desempenhando um papel importante de solidariedade e cuidado com essa comunidade.
Pérola (nome fictício) é uma travesti que mora em Niterói, no Rio de Janeiro. Ela é uma profissional do sexo e, além de lidar com as condições difíceis que o trabalho implica, também sofre de desnutrição, tuberculose, HIV, prisão de ventre e outras questões de saúde. Seu lar é um hotel social, que oferece café da manhã e jantar – suas únicas refeições. Ela já estava há três meses sem receber o salário. Nesta realidade, é difícil pensar em quais formas de amparo devem ser acionadas primeiro – retificação de nome social, atendimento em locais de saúde pública ou cuidados contra a violência. No entanto, Pérola seguiu por um caminho que antes sequer poderia ser pensado: buscou atendimento em um serviço da Faculdade de Nutrição da UFF, o Ambulatório de Nutrição Inclusiva, projeto de extensão que promove consulta, acolhimento, escuta e encaminhamentos possíveis e realistas para cada paciente.
“Nós não poderíamos falar para ela comprar o almoço, por exemplo, porque ela não tinha como fazer isso. Então pensamos em parcerias, recomendamos a busca de projetos sociais com doações de alimentos e quentinhas, padarias, locais próximos de onde ela trabalhava e que ela poderia criar uma relação de confiança”, explica Ursula Bagni, coordenadora do projeto e professora do departamento de Nutrição Social da universidade.
“São situações difíceis de pensar. [A Pérola] pode não enxergar como fugir dessas limitações, mas nós, do Ambulatório, podemos ajudar a pensar em outros caminhos, os que não estão nos livros. Os alunos envolvidos podem ver no dia a dia como se constrói a leveza no cuidado das pessoas atendidas”.

Atendimento no Ambulatório com Ursula e alunos. Foto: Arquivo pessoal
O Ambulatório de Nutrição Inclusiva é um espaço de solidariedade e preservação da vida, preenchendo uma lacuna em uma área que ainda apresenta pouca diversidade e com o objetivo de superar a escassez de nutricionistas que trabalham com pessoas da comunidade LGBT e Pessoas com Deficiência (PcD). O serviço funciona como um apoio ao Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 2008 para cuidar de procedimentos médicos, psicológicos e cirúrgicos de pessoas trans. Quem busca esses cuidados, no entanto, ainda encontra obstáculos, como filas de espera, necessidade de recorrer à justiça para receber tratamentos e a falta de especialização nas unidades.
Para pensar o futuro dessa população, a equipe dedica as manhãs de quarta-feira ao atendimento nutricional de pessoas transgênero e com deficiência da cidade de Niterói e municípios vizinhos. Iniciado no final de abril deste ano, o projeto já realizou mais de 20 consultas e conta com a maioria dos pacientes pertencentes aos grupos LGBTQIAP+. A ação que articula serviço, pesquisa e ensino busca levar às populações invisibilizadas a oportunidade e o acesso à saúde alimentar, com assistências nutricionais gratuitas e de qualidade, além de produzir materiais educacionais e permitir o convívio dos alunos com diferentes realidades.
Bagni relata que toda a estrutura de atendimento foi pensada para preservar a privacidade e atender as necessidades específicas dos públicos. “Junto à direção da Faculdade de Nutrição, conseguimos um local que está sendo adaptado para ser um consultório inclusivo tanto para os pacientes, quanto para os alunos que pertencem a esses grupos em maior vulnerabilidade. Adquirimos, por exemplo, equipamentos como balança para cadeirantes, maca para pessoas obesas e uma rotuladora em braile para adaptar o consultório aos estudantes com deficiência visual”.

Projeção das cores da bandeira trans no Palácio do Congresso Nacional em celebração ao Dia Nacional da Visibilidade Trans, Brasília. Foto: Pedro França/Agência Senado
Durante as consultas, a professora e os alunos fazem todos os procedimentos necessários para prescrever uma dieta e dar orientações nutricionais: a anamnese – uma entrevista aprofundada sobre a realidade de cada pessoa; as medidas de peso, estatura e dobras cutâneas; medidas de pressão arterial; a medida da força da mão com um dinamômetro, para avaliar a funcionalidade muscular; e a medição da glicose e dos lipídios no sangue por meio do uso de equipamentos portáteis, que precisam de apenas de algumas gotas de sangue do dedo. Os pacientes também preenchem um formulário sociodemográfico, que, analisado de maneira integrada aos dados de saúde, auxiliam os profissionais a identificarem uma linha de base de cada indivíduo e indicar um tratamento mais assertivo.
De acordo com a professora, é essencial detectar as questões mais críticas logo no primeiro contato e rastrear os problemas mais comuns, que são a diabetes, as gorduras no sangue em níveis inadequados e a pressão arterial elevada. “Em menos de 10 minutos já sabemos o valor da glicose, colesterol, triglicerídeos, LDL e HDL. Medimos tudo na hora e já damos o retorno para o paciente durante a consulta, porque sabemos que muitos deles não têm a chance de fazer esses exames na atenção primária”.

Alunos do Ambulatório de Nutrição Inclusiva. Foto: Ursula Bagni
Bagni diz que, apesar de ser um ambulatório de nutrição, nem sempre os pacientes saem com uma dieta prescrita, como em clínicas tradicionais. “Se eu der muita coisa para a pessoa fazer num único momento, eu sei que a adesão pode ser muito baixa. Então a gente explica e faz um acompanhamento de vários encontros”, afirma.
Para a equipe, é mais válido sugerir melhorias e tentar lapidar a alimentação, considerando a realidade de cada um, dentro das possibilidades financeiras e também emocionais. “Às vezes até fazemos um cardápio, mas em cada consulta o aperfeiçoamos de acordo com o estágio de prontidão para mudanças que cada pessoa apresenta. Na clínica, trabalhamos com a vertente da nutrição comportamental. Existem as pessoas que podem já estar prontas e outras que sequer têm a consciência de que precisam mudar. A gente faz, principalmente, educação em saúde. Mais do que dar prescrições, a gente explica os porquês”.
Cuidados específicos da nutrição inclusiva
Desde a época da pandemia, quando as aulas eram de forma remota, o grupo passou a produzir diversas cartilhas sobre alimentação saudável e possível. São materiais concisos e informativos para cada situação, como, por exemplo, alimentação para pessoas com nanismo, glossário de alimentação, nutrição e saúde em libras, entre outros. A professora explica que cada situação precisa de um cuidado específico, assim como nos casos de mulheres e homens transexuais.
Em ambos os casos, uma cautela especial é em relação ao ganho de peso devido à hormonização, que provoca fome acentuada e pode levar à dificuldade de controlar a alimentação. A terapia hormonal é um recurso utilizado para conciliar as características biológicas e físicas à identidade de gênero da pessoa. Dados de uma pesquisa realizada entre 2019 e 2021 pela Revista Brasileira de Epidemiologia, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), indicam que a maioria das mulheres trans no país faz uso de hormônios sem um acompanhamento adequado. De 1317 participantes, aproximadamente 86% delas já haviam usado estrogênio, porém 72% faziam o uso sem prescrição médica, o que pode causar graves danos à saúde.
“O tratamento com o estrogênio, por exemplo, pode favorecer a desmineralização óssea em mulheres transexuais, assim como ocorre com as mulheres cis (aquelas que se identificam com o gênero designado no nascimento). Assim, a dieta é pensada para incluir alimentos ricos em cálcio, como queijo, leite ou iogurte, e folhas verde-escuras, para evitar osteoporose ou osteopenia. No caso de homens trans, quando iniciam o tratamento com testosterona, eles podem apresentar aumento dos lipídios no sangue, então o cuidado é reforçado em relação ao colesterol e aos riscos a doenças cardiovasculares, o que demanda uma dieta cardioprotetora Mas o fato de hormonizar não é uma sentença, isso só aumenta as probabilidades de determinadas condições”, explica Bagni.
Sabe-se que os problemas no cotidiano de alimentação podem acontecer por várias causas, como custo dos alimentos, hábitos e gosto pessoal. No entanto, a docente explica que, nesses momentos, o intuito está na construção conjunta e personalizada de um plano alimentar factível com a realidade de cada paciente.

Ursula Bagni em apresentação de palestra sobre acompanhamento nutricional da população LGBTQIA+. Foto: Reprodução/Instagram
“Existem homens trans, por exemplo, que estão com exames laboratoriais ótimos, com peso adequado, e que nos procuram porque querem hipertrofiar. Ou mulheres trans querem ficar mais curvilíneas e querem ganhar peso para ficar com um corpo mais alinhado com o que deseja. Seja para ganhar massa muscular ou para mudar as curvas do corpo, a dieta prescrita é feita em conjunto através do diálogo, imprescindível no ambulatório. Também já atendemos várias pessoas não binárias que não têm interesse em mudança corporal, então fazemos uma orientação voltada para a alimentação saudável. Nós avaliamos tudo individualmente. Às vezes a pessoa não toma hormônio, mas o exame laboratorial está ruim”, esclarece a professora.
Compartilhando conhecimento
A experiência dos atendimentos também é berço para pesquisas científicas sobre o tema de nutrição inclusiva. Com os dados coletados em prontuários e a troca dos alunos e pacientes, a pesquisa “Alimentação, nutrição e saúde de pessoas assistidas em ambulatório de nutrição inclusiva” está sendo produzida pela equipe do projeto. A ideia é que as consultas e os ensinamentos sirvam, também, para preparar outros profissionais de saúde para lidarem com a realidade LGBTQIAP+, por isso a tarefa de traçar perfis é pertinente para direcionar os estudos da área e cobrir as demandas que surgem nos consultórios de nutrição.
O dia a dia do ambulatório é levado para as salas de aula em formas de exemplos, atividades e estudos de caso. “Eu faço o trabalho de contabilizar e colocar cada aprendizado em formato de pesquisa, para que as ideias não se percam. Publicar artigos em revistas de pesquisa e extensão, com metodologias científicas reconhecidas, é uma maneira de instrumentalizar outros profissionais, seja ainda na faculdade ou já formados, que não tiveram a oportunidade de lidar diretamente com as questões que fogem do escopo tradicionalmente abordado nos cursos da saúde”, destaca Bagni.
Essa união entre academia e prática, sob o olhar social e da especialização, tem atraído os alunos para participarem do projeto. A coordenadora destaca que os discentes enxergam na atividade uma oportunidade de lidarem com realidades distintas daquilo que encontram na rotina da rede de saúde. Além dela, mais três alunos participam dos atendimentos semanais.
“Eles já reconhecem sozinhos que não adianta pensar apenas em tratar condições isoladas, como diabetes ou hipertensão, quando há grupos específicos na sociedade que vivem uma realidade de vida muito complexa. A gente lida com situações que nem imaginamos, por isso é preciso se preparar para as orientações e direcionar os atendimentos”.
Serviço gratuito e fácil agendamento
O agendamento de consultas no Ambulatório de Nutrição Inclusiva pode ser realizado pelos interessados que se encaixam nos grupos de pessoas adultas com deficiência ou transexuais pelo WhatsApp: 21 98023-2344. O atendimento ocorre toda semana de modo presencial, às quartas-feiras de manhã, na Faculdade de Nutrição da UFF, em Niterói. Visite o instagram do projeto
UFF se destaca por ações de inclusão
A UFF se tornou pioneira no sistema de cotas para pessoas transexuais no estado do Rio de Janeiro, ao reservar 2% de vagas para ingresso nos cursos de graduação e pós-graduação da faculdade. A iniciativa promove a inclusão social e a diminuição da disparidade de gênero na sociedade brasileira e no ambiente acadêmico, bem como visa erradicar a discriminação, exclusão e violência contra esse grupo. Além disso, a universidade também realiza diversos projetos com foco em ampliar os serviços de qualidade para a comunidade LGBTQIAP+.
- TRANSformando sorrisos: saúde/odontologia
O projeto de extensão recebe pacientes da comunidade trans para atendimento odontológico nas clínicas de graduação da Faculdade de Odontologia da UFF em Niterói. Além de cuidar da saúde bucal das pessoas transgênero, os alunos também têm a oportunidade de lidar com diferentes realidades e agregar à formação as boas práticas de acolhimento a grupos invisibilizados.
O programa busca criar um espaço de empatia, inclusão e justiça na formação e integração de redes de cooperação em diversas áreas institucionais. O projeto desenvolve ações educativas e eventos relacionados à diversidade, inclusão e tecnologias sociais, bem como aprimorar a educação básica referente à solidariedade e equidade.
- Jogo do Privilégio e da Diferença: práticas lúdicas de promoção de direitos humanos em Campos dos Goytacazes/RJ: direitos humanos e justiça
Os jogos de tabuleiro se tornam palco lúdico de letramento em Direitos Humanos no projeto da UFF-Campos dos Goytacazes, no interior do Rio. A intenção é fomentar uma educação inclusiva em direitos de quem é beneficiado por políticas de igualdade racial e direitos humanos através de pensamentos críticos, conscientização sobre discriminação e preconceito e reflexões de empatia e aprendizagem sobre os privilégios e direitos sociais.
- Rede VisibilizaUFF: saúde/odontologia
Na UFF-Nova Friburgo, o projeto da Faculdade de Odontologia cuida da saúde bucal de pessoas da comunidade trans nas clínicas da universidade. O acolhimento é feito, também, através da educação de alunos, a gestão municipal do SUS e dos profissionais de saúde sobre as especificidades das pessoas transgênero.
O projeto de extensão busca formar profissionais livres de preconceitos e que defendam a democracia, igualdade e a ampliação da cidadania. A iniciativa promove debates políticos junto à comunidade acadêmica da UFF e os movimentos de combate à transfobia e LGBTIfobia em Niterói.
Ursula Bagni é professora do departamento de Nutrição da Universidade Federal Fluminense (UFF). É nutricionista pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre e doutora em Ciências Nutricionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem experiência em Nutrição em Saúde Coletiva, especialmente em Diversidade e Inclusão na área da saúde e Cuidado nutricional de populações vulneráveis. É membro da equipe do Ambulatório Identidade Transdiversidade da UERJ, líder do Observatório Multidimensional de Nutrição Inclusiva e coordenadora do projeto de extensão Ambulatório de Nutrição Inclusiva da UFF. Faz parte da Comissão de Diversidade e Inclusão do Conselho Regional de Nutrição da 4ª Região, e da Comissão de Diversidade, Equidade e Inclusão do Conselho Federal de Nutrição.
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