Entre erros de cálculo e disputas geopolíticas: veja os impactos do tarifaço dos EUA – Diário de Niterói
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Entre erros de cálculo e disputas geopolíticas: veja os impactos do tarifaço dos EUA


Em abril de 2025, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou tarifas comerciais a mais de 180 países, o que marca um novo capítulo nas tensões do comércio internacional. A medida foi batizada de “tarifaço” e já era prevista pela campanha presidencial do republicano.

A política tarifária anunciada por Trump tem como base o princípio da reciprocidade. Com isso, os Estados Unidos passarão a impor alíquotas de importação entre 10% e 50% sobre os produtos de diversos países, incluindo o Brasil. Por fim, a definição do percentual aplicado dependerá das tarifas já cobradas por esses países sobre bens norte-americanos.

O caso com a China 

As tarifas aplicadas pelos Estados Unidos aos produtos importados da China agora somam 145%, conforme informado pela Casa Branca. O aumento mais recente foi anunciado pelo presidente Donald Trump na quarta-feira (9), quando ele declarou uma elevação de 125% nas taxas, com efeito imediato. A medida veio em resposta às retaliações aplicadas por Pequim, que também decidiu elevar suas tarifas sobre produtos norte-americanos para 84%. Segundo a Casa Branca, a nova alíquota de 125% se soma à tarifa de 20% já vigente anteriormente, especialmente relacionada à questão do fentanil, totalizando a carga tributária de 145%.

Esse aumento marca a escalada mais recente de uma série de medidas adotadas ao longo dos últimos meses. Em fevereiro, os Estados Unidos já haviam aplicado uma taxa extra de 10% sobre as importações chinesas, que se somou a outra de 10% já em vigor, resultando em 20%. Essa primeira etapa indicava uma postura mais rígida do governo americano nas negociações comerciais com a China, especialmente diante do aumento das tensões entre os dois países.

Já no início de abril, Trump anunciou seu plano de “tarifas recíprocas”, que acrescentou 34% em taxas às importações chinesas. Com isso, a tarifa subiu para 54%. A resposta da China foi imediata, impondo também uma taxa de 34% sobre produtos dos Estados Unidos. Como reação, a Casa Branca confirmou mais 50% de tarifas contra os chineses, elevando a alíquota total a 104%.

O presidente dos EUA, Donald Trump, participa de uma reunião bilateral com o presidente da China, Xi Jinping, durante a cúpula dos líderes do G20 em Osaka, Japão, em 29 de junho de 2019. | Reprodução: REUTERS/Kevin Lamarque

Com a China afirmando que elevaria a 84% as taxas sobre produtos norte-americanos, Trump decidiu aplicar uma nova alta, chegando aos 125% adicionais, que somados aos 20% anteriores completam os 145%. Essa sequência de aumentos reflete não apenas a deterioração das relações comerciais entre as duas maiores economias do mundo, mas também a adoção de uma estratégia agressiva de taxação por parte dos EUA, baseada em represálias sucessivas.

As tarifas impostas pela China aos produtos norte-americanos podem afetar a competitividade das exportações dos EUA. O professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense, Adriano Vilela Sampaio, explica melhor os efeitos: 

“Afetam diretamente a competitividade das exportações porque implicam aumento de preços desses produtos para os consumidores chineses. No dia 11 de abril a China anunciou que as tarifas seriam de 125%, uma retaliação para igualar a imposta às suas exportações ao mercado americano. O aumento de preços pode ser menor que essa tarifa, pois as empresas exportadoras dos EUA poderiam aceitar uma redução no lucro e aumentar menos o preço, para não perder mercado. Ainda assim, por ser uma tarifa muito alta, o aumento de preços será expressivo, a tal ponto que segundo comunicado das autoridades chinesas, sob essas tarifas os produtos americanos não são mais comercializáveis no país.”

Por fim, nesta quarta-feira (16), os Estados Unidos anunciaram o aumento das tarifas para até 245% sobre produtos chineses, como resposta a medidas retaliatórias da China. A tarifa inclui uma taxa recíproca de 125%, 20% para combater a crise do fentanil e tarifas adicionais (entre 7,5% e 100%) com base na Seção 301, que trata de práticas comerciais desleais, como a transferência forçada de tecnologia. O governo Trump usa como justificativa a defesa das tarifas como uma forma de proteger a segurança nacional e equilibrar a concorrência. A China, por sua vez, manteve sua posição, recusando-se a negociar. Logo, a China foi a única exceção à pausa nas tarifas individuais.

O caso da fórmula errada utilizada pela Casa Branca 

O cálculo das chamadas “tarifas recíprocas” implementadas pelo governo Trump foi duramente criticado por economistas conservadores por conter uma falha grave, capaz de quadruplicar o valor real das tarifas. Segundo Kevin Corinth e Stan Veuger, do American Enterprise Institute (AEI), a fórmula adotada pela administração Trump divide o déficit comercial dos EUA com determinado país pelo valor das importações provenientes dele, utilizando, no entanto, um valor incorreto para a elasticidade dos preços de importação em relação às tarifas – representada pela letra grega φ (phi). A Casa Branca teria usado φ = 0,25, valor típico do varejo, enquanto o correto, segundo os analistas, seria 0,945, considerando os preços de importação.

Na prática, o erro de cálculo inflou artificialmente as tarifas anunciadas. O próprio Alberto Cavallo, da Harvard Business School, citado como base pela Casa Branca, discordou da fórmula, afirmando que a elasticidade real está mais próxima de 1. Corrigir o erro reduziria drasticamente o valor das tarifas. Países como o Vietnã, por exemplo, veriam suas tarifas caírem de 46% para 12,2%. Já Lesoto, que enfrenta uma tarifa de 50%, teria essa alíquota reduzida para cerca de 13,2%. Corinth e Veuger destacam ainda que o cálculo ignora variáveis cruciais para entender o déficit comercial, como cadeias de suprimento, geografia e fluxos de capital.

A fórmula adotada prejudica desproporcionalmente países mais pobres, que possuem superávits comerciais com os EUA não por força de barreiras tarifárias, mas por suas limitações de consumo. Madagascar, com PIB per capita de pouco mais de US$ 500, terá uma tarifa de 47% sobre exportações de baunilha, metais e roupas. Já Lesoto, que exporta principalmente diamantes e tecidos como jeans Levi’s, teve imposto de 50% sobre produtos que somam mais de 10% de seu PIB. O impacto dessas medidas é devastador para economias frágeis, como alertou o analista Thabo Qhesi, prevendo o colapso do setor têxtil no país africano.

Além dos erros metodológicos, o tarifaço revela uma abordagem política e econômica questionável. A ideia de “reciprocidade” nas tarifas, defendida por Trump, não considera a complexidade das relações comerciais globais nem as desigualdades estruturais entre países. O diretor da Câmara de Comércio Internacional, John Denton, ironizou a lógica americana ao afirmar que “ninguém está comprando Teslas em Madagascar”, evidenciando o descompasso entre a retórica política dos EUA e a realidade econômica de seus parceiros comerciais. O risco, segundo Denton, é minar ainda mais as perspectivas de desenvolvimento de países já vulneráveis, agravando a desigualdade global.

Nesse sentido, o professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, explica sobre as possíveis motivações antropológicas das ações estadunidenses: “Pode-se interpretar essa postura como uma tentativa de impor a soberania econômica norte-americana sobre outras nações, ainda que tal atitude vá ao encontro do princípio de anarquia que rege o sistema internacional, no qual nenhum Estado detém autoridade suprema sobre os demais. A política tarifária agressiva dos EUA insinua, nesse caso, uma vontade de retomada de uma posição hegemônica, com traços de dominação econômica e simbólica.”

Entretanto, de acordo com o professor, o embate tarifário atual parece ter motivações mais econômicas e políticas internas do que ser expressão de uma disputa civilizatória entre Ocidente e Oriente. “Isso fica evidente quando se observa que a União Europeia, tradicional aliada dos EUA e símbolo da civilização ocidental, também é um dos principais alvos das sanções. Nesse sentido, a atual política tarifária pode ser vista como um rompimento com a tradição de cooperação transatlântica forjada no pós-Segunda Guerra Mundial, em favor de um isolacionismo com traços de supremacismo econômico e político”, explica Pinto.

Reprodução: Flickr / Ängelo Rigon

Como os países mundo afora reagiram? 

Apesar de Donald Trump ter anunciado uma suspensão temporária no chamado “tarifaço do Dia da Libertação” e reduzido momentaneamente as sanções a uma taxa básica de 10%, os consumidores internacionais seguem boicotando produtos dos Estados Unidos. Em diversas regiões, especialmente no Canadá e na Europa, ganham força campanhas de incentivo à compra de produtos locais, impulsionadas por redes sociais e movimentos espontâneos em lojas físicas. Mesmo com o recuo parcial do governo norte-americano em 9 de abril, a China permaneceu como exceção e continua enfrentando tarifas de 125%, segundo Trump, por supostamente demonstrar “falta de respeito” aos mercados globais. A retaliação dos governos afetados pelas tarifas tem sido acompanhada de uma resposta popular crescente.

“O tarifaço abrange praticamente toda a pauta de importações dos EUA e como elas são parte importante da oferta de bens doméstica, o efeito inflacionário é inevitável. Além disso, o país com maior participação no suprimento dessas importações, acima de 16%, é a China, cujos produtos, no momento (as mudanças têm sido diárias), estão taxadas em mais de 100%, o que agrava ainda mais o risco inflacionário”, explica Sampaio.

Ademais, as redes sociais desempenham papel fundamental na mobilização contra os produtos dos EUA. Grupos como o francês “Boycott USA: Achetez Français et Européen!”, com mais de 30 mil membros, e os suecos “Bojkotta varor från USA” e “Boykot varer fra USA”, com mais de 125 mil membros somados, se uniram para pressionar pelo fim das sanções. Na Alemanha, 64% da população declarou que evitaria consumir itens americanos, conforme pesquisa do instituto Cuvey. Além disso, ações simbólicas, como colocar produtos norte-americanos de cabeça para baixo nas prateleiras de supermercados, ganharam espaço na Europa e no Canadá, como forma visual de protesto. Empresas também entraram na onda, como o Salling Group, da Dinamarca, que começou a marcar produtos europeus com uma estrela preta para facilitar a escolha dos consumidores.

Reprodução: Facebook

A Tesla tem sido um dos maiores alvos desses boicotes. A montadora de Elon Musk – principal doador da campanha de Trump e atual conselheiro da Casa Branca – viu suas ações caírem 40% na bolsa e sofreu com a queda de 13% nas vendas globais no primeiro trimestre de 2025. Na Europa, esse número foi ainda mais drástico: as vendas de janeiro caíram 45% em relação ao ano anterior. O setor de carros elétricos, antes dominado pela Tesla, agora vê empresas como Volkswagen, BMW e outras marcas do grupo VW assumindo a liderança. Enquanto isso, algumas empresas europeias e canadenses tomam atitudes ainda mais incisivas: a norueguesa Haltbakk Bunkers, por exemplo, suspendeu o fornecimento de combustível para navios da Marinha dos EUA.

No Canadá, o clima anti-Trump gerado pelo tarifaço fortaleceu o Partido Liberal, agora liderado por Mark Carney. As sobretaxas de 25% impostas aos produtos canadenses fizeram crescer campanhas patrióticas como “Buy Canadian Instead”, compre (produtos) canadense em vez disso, em português, enquanto governos locais romperam contratos com empresas americanas, como fez Doug Ford ao cancelar um acordo de 100 milhões de dólares canadenses com a Starlink. Websites e aplicativos como Maple Scan e Made in CA ajudam os consumidores a evitar produtos dos EUA. Essa mobilização faz lembrar outros momentos históricos, como o episódio das “freedom fries”, mas agora em escala muito mais ampla e organizada, com impactos reais nas relações comerciais internacionais e na imagem global das empresas norte-americanas.

Prateleiras vazias com placas Buy Canadian Instead são vistas na seção American Whiskey da BC Liquor em Vancouver, British Columbia, Canadá, 10 de março de 2025. | Reprodução: REUTERS/Jennifer Gauthier

De forma geral, há risco de desaceleração do crescimento econômico. “Isto pois trata-se da maior economia do mundo e maior importadora global, de forma que as tarifas tendem a afetar as exportações do mundo todo. E é um momento de altíssima incerteza, que paralisa investimentos e atrapalha as estratégias das empresas ao redor do mundo. Considerando as idas e vindas desde o último dia 02/04, quando foram anunciadas as primeiras tarifas, as empresas vão esperar uma definição mínima do cenário futuro para tomar decisões. Enquanto isso, empregos deixam de ser gerados, planos de expansão não saem do papel, compras de insumos deixam de ser feitas, etc”, comenta Sampaio.

Impactos no Brasil

A nova tarifa afeta especialmente países com forte relação comercial com os EUA – e o Brasil está entre os principais. Os Estados Unidos são o segundo maior parceiro comercial do país, e o tarifaço deve impactar setores estratégicos da economia brasileira, sobretudo o agronegócio, o alumínio e o aço.

O Senado aprovou, no dia 01/04, um projeto de lei que autoriza o governo brasileiro a adotar medidas de retaliação comercial contra países ou blocos econômicos que imponham barreiras consideradas injustas às exportações do Brasil. A proposta, que ainda precisa passar pela Câmara, é vista como uma resposta do Brasil a ações internacionais que afetam a competitividade dos produtos brasileiros no mercado global, mais notadamente as tarifas impostas pelo governo Donald Trump.

O projeto de lei cria instrumentos legais para que o Brasil possa suspender concessões comerciais, investimentos e direitos de propriedade intelectual de países que adotem práticas unilaterais prejudiciais ao país. Caberá à Câmara de Comércio Exterior (Camex) coordenar essas medidas, em parceria com o setor privado.

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Adriano Vilela Sampaio possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2005), mestrado em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009) e doutorado em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (2014). É professor da Universidade Federal Fluminense desde janeiro de 2014. Leciona e pesquisa nas áreas de Economia Internacional, Macroeconomia e Economia Monetária e Financeira.

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (1992), graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994), mestrado em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (1997) e doutorado em Antropologia – Boston University (2002). Atualmente é professor associado do Departamento de Antropologia e do PPGA da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Núcleo de Estudos do Oriente Médio (NEOM) da UFF. Tem pesquisas etnográficas com ênfase nos seguintes temas: Antropologia do Islã, Peregrinações, Territórios Sagrados, Xiismo, Sufismo, Nacionalismo e Etnicidade, Impacto das Revoluções Árabes, Diásporas Árabes. Realizou trabalhos de campo etnográficos sobre diferentes aspectos da religiosidade muçulmana na Síria (1999-2010); Iraque (2012-2013); Tunísia (2014); Marrocos (2003; 2014); com as comunidades muçulmanas no Brasil (Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Foz do Iguaçu, Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e Oliveira 2003-2020); Paraguai (Ciudad del Este 2005-2015, Encarnacion 2006, Asuncion 2015); e Argentina (2018, 2019, 2020). 

 

Por Lívia Galvão
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