Homeschooling: Uma Alternativa Viável
Autor(a)
João Marcus Wanderley
Presidente da Comissão Homeschooling –
Educação Domiciliar OAB Niterói
Recentemente, foi proferida decisão, por unanimidade de votos, na 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), validando a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal em relação à Lei Distrital nº 6.759/2020[1], que instituiu o ensino domiciliar (homeschooling) no Distrito Federal.
Essa decisão, tomada em sessão virtual e de forma unânime no dia 28 de março, no âmbito de um recurso extraordinário, gerou grande controvérsia, especialmente entre aqueles que se opõem ao homeschooling como modelo educacional alternativo, fomentando a disseminação de informações imprecisas sobre sua legalidade.
Outra decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida em plenário em setembro de 2018[2], já havia estabelecido que o ensino domiciliar (homeschooling) só pode ser criado e regulamentado pelo Congresso Nacional, por meio de lei federal. Consequentemente, qualquer legislação municipal, estadual ou distrital que o adote será inconstitucional por invadir a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação.
Nesse contexto, o julgamento da Lei Distrital nº 6.759/2020 aplicou o entendimento estabelecido em 2018, cujo relator foi o Ministro Luís Roberto Barroso. O Ministro Barroso considerou o ensino domiciliar compatível com os princípios constitucionais da educação e reconheceu o direito dos pais de escolherem a forma de educar seus filhos.
Contudo, o voto que prevaleceu foi o do Ministro Alexandre de Moraes, que defendeu a tese de que não existe um direito constitucional subjetivo ao ensino domiciliar, e que a matéria necessita de regulamentação legislativa. O Ministro assevera que:
“a análise conjunta dos artigos 226, 227 e 229 da Constituição, que tratam da parte de família, criança adolescente e do jovem colocando-os como principais sujeitos de direito, com os arts. 205, 206 e 208, que disciplinam a questão educacional, leva à conclusão de que não há vedação absoluta ao ‘ensino domiciliar’ no Brasil.”[3]
Na prática, isso significa que o homeschooling é considerado legal e constitucional, mas depende ainda de regulamentação, ou seja, não há critérios objetivos nem legislação específica que discipline sua realização.
Para as famílias que praticam essa modalidade educacional há uma insegurança jurídica, pois, apesar de sua constitucionalidade, existe legislação que determina que a criança seja enviada a escola a partir dos 4 anos[4].
Em eventual denúncia ao Conselho Tutelar, com alegação de que a criança não vai a escola, a família pode enfrentar um possível processo instaurado pelo Ministério Público, que exige que o menor seja matriculado em instituição de ensino, sendo cogitado ainda o crime de abandono intelectual.
Este suposto crime, no entanto, não subsiste, pois, o art. 246 do Código Penal[5] capitula o crime de deixar de prover instrução primária, e, no caso dos estudantes homeschoolers há comprovação robusta de que não existe abandono, muito pelo contrário, a prova é farta de que existe muito mais consistência e profundidade no estudo do que aquele provido pela Escola.
Educação e Escolarização
Ao abordar o homeschooling, fala-se fundamentalmente sobre educação. A educação, tal como a conhecemos hoje, pode até ser interpretada como escolarização, mas ambos os conceitos são distintos.
A escolarização é uma forma de educar relativamente recente, considerando-se a existência de outros modelos ao longo da história. A educação domiciliar, por exemplo, não é um fenômeno novo. Antes da estruturação dos sistemas público e privado de educação, o ensino doméstico era o principal método pedagógico utilizado em todo o mundo. Tutores e professores particulares constituíam a forma habitual de educar crianças e adolescentes em diversas culturas. Após o surgimento e a ampliação dos sistemas públicos e particulares de ensino, entretanto, a escolarização passou a ser a regra, à medida que pais e responsáveis, por diversos motivos, optaram por transferir as atribuições de ensino e educação a profissionais organizados em ambientes escolares.
A educação, em sentido amplo, portanto, transcende os limites das instituições formais de ensino. Ela é um processo contínuo, integral e multidimensional, que envolve a formação do indivíduo em suas dimensões intelectual, moral, social, emocional e cultural. Não se restringe à mera transmissão de conteúdos acadêmicos, mas abrange valores, atitudes, habilidades e competências necessárias para a vida em sociedade. A educação pode ocorrer em diversos ambientes: na família, na comunidade, no trabalho, em experiências cotidianas e, claro, na escola.
A escolarização, por sua vez, é apenas uma das vias possíveis para a realização do processo educativo. Trata-se do ensino sistematizado, formal, geralmente realizado em instituições específicas (escolas), com currículo, metodologias e avaliações padronizadas. No entanto, a escolarização não esgota o conceito de educação.
O que é o Homeschooling?
De maneira simples, o homeschooling consiste na prática pela qual os pais ou responsáveis assumem a tarefa da educação formal da criança, deixando de delegá-la às instituições de ensino. As aulas podem ser ministradas pelos próprios pais ou por professores particulares contratados por eles. De todo modo, a principal característica é que a direção e a responsabilidade pelo ensino são assumidas pelos pais que optam por realizá-lo no domicílio.
Os pais que adotam essa prática possuem diversas motivações, sendo a principal delas a preocupação genuína com o desenvolvimento educacional pleno e adequado de seus filhos. Ninguém faz essa opção, que é reconhecidamente mais trabalhosa, por preguiça ou capricho.
Esse tipo de educação é extremamente comum ao redor do mundo, sendo realizado em diversos países desenvolvidos, e tem, a cada ano, aumentado o número de adeptos. No Reino Unido são cerca de cem mil estudantes; no Canadá, aproximadamente noventa e cinco mil crianças e adolescentes; na Austrália, cinquenta e cinco mil famílias adotam o ensino doméstico; na Nova Zelândia, seis mil; na França e em Taiwan, cerca de quinhentas famílias adotam essa prática. Nos Estados Unidos, segundo o Departamento de Educação, com dados de 2012, contabilizam-se cerca de 1,8 milhão de crianças e adolescentes que recebem ensino domiciliar nos cinquenta estados da federação. O National Home Education Research Institute (NHERI)[6], entidade sem fins lucrativos que provê estatísticas sobre o tema, apresenta números maiores: cerca de 2,3 milhões de americanos. Além disso, estatísticas da mesma instituição indicam que 5,7 milhões de crianças, nos Estados Unidos, já tiveram educação domiciliar[7].
No Brasil, embora ainda não existam estatísticas oficiais, a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED) estima que cerca de 35 mil famílias adotam esse método pedagógico para a educação de seus filhos, totalizando hoje mais de 70 mil crianças entre 4 e 17 anos sendo educadas em casa[8].
A maioria dos países europeus permite, regulamenta ou, no mínimo, não proíbe o ensino doméstico. Muitos deles, inclusive, comprovadamente, obtêm os melhores resultados no PISA, um exame aplicado a jovens de 15 anos em cerca de 50 a 60 países ao redor do mundo para aferir seu conhecimento em matemática, leitura e ciências, sendo considerado o principal teste de nivelamento global do nível de formação dos estudantes[9].
Existem argumentos contrários ao homeschooling, tais como a ausência de socialização e impossibilidade de denúncia de maus tratos. No entanto, esses argumentos caem se o processo de educação domiciliar for analisado com atenção. As crianças têm contato com outras em atividades diversas, como atividades esportivas e recreacionais, tais como futebol, clubes, parques, etc.
Com relação às denúncias de abuso, a realidade é que uma família que pratica a educação domiciliar, com as devidas vênias, na verdade, envida muito mais esforços em prover uma educação de qualidade para os seus filhos. Nesse sentido esses pais não são abusadores, muito pelo contrário, são ativistas do melhor desenvolvimento das crianças. Outrossim, não há pesquisa nenhuma sobre o tema que fundamente qualquer pensamento contrário.
Casos como o da estudante Elisa de Oliveira Flemer, de 17 anos, que conquistou o 5º lugar no curso de engenharia civil da Escola Politécnica da USP, por meio do Sisu[10] demonstram a possibilidade da educação domiciliar em alcançar um pleno desenvolvimento intelectual no estudante.
Educação: Um Dever-Direito dos Pais
Na ordem constitucional brasileira, a educação é reconhecida como direito social fundamental (art. 6º da Constituição Federal), sendo “direito de todos e dever do Estado e da família”. Ela “será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205 da Constituição Federal). Ambos os entes são colocados em plano de igualdade, sem hierarquia entre si, de modo que o dever deve ser exercido por aquele que possui maiores condições concretas de satisfazê-lo efetivamente.
Corroborando tal entendimento, os artigos 206 e 229 da Constituição Federal preveem:
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
Assim, a Constituição Federal determina expressamente a obrigação primordial dos pais na educação de seus filhos, assegurando-lhes a liberdade de ensinar e transmitir seu pensamento e cultura. Por outro lado, inexiste no texto constitucional qualquer menção de que o dever de educação seja “da escola”, tornando impossível a interpretação de que esta teria preferência sobre o dever-direito dos pais de educar e ensinar.
Além da Constituição Federal, há previsões em códigos e leis federais. O Código Civil, por exemplo, determina que “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores” (art. 1.630), competindo a ambos:
Art. 1.634. […] o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos:
I – dirigir-lhes a criação e a educação;
Nesse sentido complementar, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece:
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
Parágrafo único. A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabelecidos nesta Lei.
É certo, nesse sentido, que o conjunto do nosso ordenamento jurídico prevê a primazia da educação, cuidado e ensino realizados pelos pais em favor de seus filhos, garantindo-lhes a transmissão de sua própria cultura e valores. Infere-se, portanto, que a educação familiar é colocada em primeiro plano como a primeira opção, cabendo a educação ofertada pelo Estado ser imposta apenas às famílias que não têm condições ou não possuem interesse em assumir a educação formal e integral de seus filhos, configurando-se, assim, uma atribuição e atuação subsidiária à familiar.
Ou seja, das normas analisadas, verifica-se que a primazia na direção da educação dos filhos pertence aos pais, que têm o dever de educá-los da melhor maneira possível.
É importante destacar, ainda, que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) deve ser interpretado em seu conjunto, a fim de assegurar o melhor interesse e o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes. Nesse sentido, compreende-se que o dever de matrícula obrigatória em instituição de ensino regular se aplica apenas às famílias que optarem por não realizar a educação no lar.
No âmbito internacional, diversos tratados aos quais o Brasil aderiu expressamente preveem a primazia da família na direção educacional de seus filhos.
Neste ponto, destaca-se que os tratados internacionais de Direitos Humanos possuem status de norma supralegal e natureza vinculante em relação às normas nacionais, invalidando automaticamente o conteúdo normativo nacional que lhes seja contrário.
A seguir, as previsões internacionais sobre o tema do ensino domiciliar, às quais a República Federativa do Brasil aderiu:
a) Declaração Universal dos Direitos Humanos
Artigo 26, item 3. Aos pais pertence a prioridade do direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.
b) Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) – Decreto nº 678/1992
Artigo 12 – Liberdade de Consciência e de Religião, item 4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com as suas próprias convicções.
c) Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – Decreto nº 592/1992
Artigo 18, item 1. Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.
Artigo 18, item 4. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais – e, quando for o caso, dos tutores legais – de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com as suas próprias convicções.
d) Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais
Artigo 13, item 1. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais de escolher para seus filhos escolas distintas daquelas criadas pelas autoridades públicas, sempre que atendam aos padrões mínimos de ensino prescritos ou aprovados pelo Estado, e de fazer com que seus filhos venham a receber educação religiosa ou moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções.
e) Convenção Internacional dos Direitos das Crianças
Artigo 18, item 1. Os Estados-partes envidarão os maiores esforços para assegurar o reconhecimento do princípio de que ambos os pais têm responsabilidades comuns na educação e desenvolvimento da criança. Os pais e, quando for o caso, os representantes legais têm a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Os interesses superiores da criança constituirão sua preocupação básica.
Artigo 18, item 2. Para o propósito de garantir e promover os direitos estabelecidos nesta Convenção, os Estados-partes prestarão assistência apropriada aos pais e aos representantes legais no exercício das suas funções de educar a criança e assegurarão o desenvolvimento de instituições e serviços para o cuidado das crianças.
Nesse sentido, existe um robusto ordenamento jurídico pátrio e internacional, aplicável no Brasil, que privilegia a direção dos pais na condução da educação de seus filhos, antes da intervenção estatal.
Conclusão
Diante da constitucionalidade do modelo de ensino domiciliar e da robusta legislação favorável à direção dos pais na condução da educação dos filhos, entende-se que o homeschooling é uma alternativa viável para famílias que, por motivos profissionais, de saúde, ideológicos ou religiosos, optem por essa modalidade.
Nesse sentido, o judiciário brasileiro deveria, em vez de processar famílias homeschoolers por suposto crime de abandono intelectual ou obrigá-las a matricular os filhos na escola, aferir, de maneira prática, se há negligência por parte dos genitores e se a evolução educacional e emocional das crianças é compatível com sua idade.
Se for comprovado que não há negligência e que os estudantes apresentam evolução educacional e emocional compatíveis com sua idade, não há razão para proibir a aplicação do modelo educacional de homeschooling. A proibição, nesse contexto, revela uma falta de senso crítico por parte dos aplicadores da Lei, senso esse que, paradoxalmente, parece abundar nos estudantes adeptos do homeschooling.
Referências:
[1] A Lei Distrital nº 6.759/2020 visava regulamentar a educação domiciliar no Distrito Federal, permitindo que as famílias pudessem educar seus filhos em casa, sob a supervisão do Estado. No entanto, o STF entendeu que a lei era inconstitucional, pois a regulamentação do ensino, incluindo a forma como ele é ministrado, é uma competência privativa da União. A decisão do STF tem como base a interpretação de que a lei distrital invadia a competência da União para legislar sobre educação, conforme previsto na Constituição Federal.
[2] O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) negou provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 888815, com repercussão geral reconhecida, no qual se discutia a possibilidade de o ensino domiciliar (homeschooling) ser considerado como meio lícito de cumprimento, pela família, do dever de prover educação. Segundo a fundamentação adotada pela maioria dos ministros, o pedido formulado no recurso não pode ser acolhido, uma vez que não há legislação que regulamente preceitos e regras aplicáveis a essa modalidade de ensino.
[3] Trecho voto Ministro Alexandre de Moraes julgamento Recurso Extraordinário (RE) 888815.
[4] Lei 9.394/96 – Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: I – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, organizada da seguinte forma:
[5] Art. 246 CP. Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar
[6] https://nheri.org/homeschooling-research-studies-and-scholarship/
[7] https://hslda.org/legal/international
[8] https://aned.org.br/ed-no-brasil/
[9] OECD, PISA 2015 Results (Volume I): Excellence and Equity in in Education, Education, 2016. 2016. Disponível Disponível <http://www.oecd.org/publications/pisa-2015-results-volume-i9789264266490-en.html
[10] Estudante que fez ‘homeschooling’ e foi aprovada na USP entra na Justiça para tentar fazer matrícula | Sorocaba e Jundiaí | G1
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