Pesquisa da UFF revela que 79% dos brasileiros acreditam na democracia; 71% estão insatisfeitos com o exercício no país – Diário de Niterói
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Pesquisa da UFF revela que 79% dos brasileiros acreditam na democracia; 71% estão insatisfeitos com o exercício no país


Uma pesquisa inédita desenvolvida pelo Laboratório de Estudos Sócio Antropológicos em Política, Arte e Religião da Universidade Federal Fluminense (LePar/UFF), em parceria com o Instituto DataFolha, revela os complexos valores e contradições que permeiam a sociedade brasileira. Intitulado “Religião, política e valores dos brasileiros: entre extremismos e mediações”, o estudo coordenado pelos docentes Christina Vital, da UFF e Doriam Borges, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ouviu 1.500 pessoas em todas as regiões do país, com margem de erro de 3 pontos percentuais. Os dados mostram um Brasil que valoriza a democracia, mas está insatisfeito com seu funcionamento, apoia igualdade de gênero e cotas raciais, mas resiste a avanços em direitos sexuais e reprodutivos.

O estudo procura identificar valores e comportamentos dos brasileiros e compreender como eles se articulam a diferentes grupos religiosos, suas teologias, doutrinas, cosmologias e formas de participação políticas e sociais. “Embora nosso foco principal recaia sobre a relação entre valores e religiões, também analisamos as interações desses elementos com questões de sexualidade, gênero, raça e regiões do país. Os não religiosos também são alvo de nosso interesse, dado o crescimento expressivo desse segmento nos levantamentos censitários mais recentes no Brasil, especialmente entre a juventude urbana”, explica Vital.

A interpretação da convivência entre valores progressistas e conservadores pode ser uma grande contribuição da pesquisa como um todo para o entendimento da sociedade brasileira sobre si mesma. A professora destaca que, o que chama atenção nos resultados preliminares obtidos, em primeiro lugar, é a identificação positiva do brasileiro em relação à democracia.

“A maioria dos brasileiros acredita que a democracia é mais eficiente do que regimes autoritários. Há uma importante defesa nacional em relação às cotas raciais e à igualdade de gênero no acesso à educação e à renda, assim como na divisão de responsabilidade entre homens e mulheres na gestão das famílias. Contudo, os grupos que mais sofrem com as desigualdades sociais no Brasil são aqueles que tem uma ligeira tolerância a governos autoritários em algumas situações. Isso, porém, não se trata de afirmar que são favoráveis ao autoritarismo”, explica Vital. 

Entre progressismo e conservadorismo: dados apontam os paradoxos do Brasil

Os dados apontam que quase 79% dos entrevistados disseram que a democracia “é sempre melhor que qualquer outra forma de governo”, enquanto apenas 13% consideram que, “em algumas situações, uma ditadura poderia ser preferível”. No entanto, essa valorização da democracia não mascara a insatisfação com o Estado, visto que 71% dos brasileiros declaram estar insatisfeitos com a democracia brasileira. “No mundo todo, uma forte insatisfação com a piora na qualidade de vida está associada à democracia, mesmo que este seja o modo de governo vigente na maior parte dos países”, pontua a professora Christina. 

As mulheres brasileiras apresentam níveis mais elevados de insatisfação com a democracia (76%) em contraposição aos homens (68%). São também as mulheres que demonstram ligeiramente uma maior tolerância à ideia de uma ditadura em certas circunstâncias (16% contra 12% dos homens). Os jovens estão igualmente insatisfeitos com a democracia (77%), provavelmente por serem os mais afetados pelo sentimento de ameaça (questão climática, violência urbana, perspectiva de empregabilidade, renda e guerras futuras que ameaçam a existência global).

Levando em consideração a questão racial, temos que os autodeclarados pretos são os mais Insatisfeitos com a democracia (75%), assim como aqueles que recebem entre 2 e 3 salários mínimos. No caso dos jovens, das mulheres e das pessoas negras, a pesquisa observa que são eles os menos satisfeitos com a democracia, refletindo o fato de serem os mais diretamente afetados pela desigualdade, pelas questões políticas, sociais e pelas ameaças locais e globais.

Foto: Freepik

Pela primeira vez uma pesquisa incorpora a dimensão da sexualidade em uma análise sobre a satisfação com a democracia. Os autoidentificados como heterossexuais são os mais insatisfeitos com a democracia (74%) e os com menor nível de insatisfação são os bissexuais (44%). No entanto, entre os bissexuais, observa-se uma maior aceitação da possibilidade de uma ditadura em alguns casos (15%). “Essa contradição pode ser explicada por outra variável: a etária. A maioria dos bissexuais se concentra na faixa dos jovens de 16 e 24 anos, justamente o grupo que se mostra mais favorável a uma ditadura, em alguns casos (17%)”, explica Christina Vital.

Já no quesito religião, o grupo mais insatisfeito com a democracia é o dos evangélicos pentecostais (80%). Tendo em vista o questionário realizado e outras experiências de pesquisa, Vital observou uma clara sobreposição entre posição de classe e doutrinas religiosas no que diz respeito a como os grupos reagem às questões colocadas. 

A pesquisa aponta a sobreposição de alguns fatores: os evangélicos pentecostais, em sua maioria, são mais jovens, mulheres e negros em termos de autoidentificação. “Somado a isso, a insatisfação parece estar relacionada a percepções de ameaças aos valores tradicionais que defendem, como a preservação da família tradicional, os papeis de gênero e um ideal de fraternidade, valores que eles sentem estarem sendo corroídos pelo liberalismo ou pelo chamado ‘globalismo’ que identificam como reinantes na democracia liberal”, explica a pesquisadora.

“Sendo assim, evangélicos de modo geral são os que apresentam posicionamento mais conservador diante das questões levantadas e são também os que estão entre os grupos sociais mais vulneráveis. Com essa pesquisa podemos dizer que essa sobreposição produz, entre evangélicos, um posicionamento mais conservador e à direita que o de outros grupos religiosos analisados, seguidos de perto pelos católicos. Isso é bastante significativo para o debate político e social na atualidade”, acrescenta.

Direitos: igualdade, punições e aborto no Brasil

Sobre temas como igualdade no acesso ao trabalho e à educação entre homens e mulheres, a maioria dos entrevistados se posiciona favoravelmente. Na questão racial e étnica, temos que 94% da população apoia as ações afirmativas para raça. No entanto, as questões ligadas à sexualidade e ao aborto evidenciam uma aproximação significativa da população ao conservadorismo e as pautas ideológicas da direita e da extrema-direita. “Para 51,3% dos brasileiros o casamento entre pessoas do mesmo sexo deveria ser proibido”, comenta Vital.

Em comparação com pesquisas passadas, a especialista observa uma mudança na percepção dos brasileiros quanto à redução da maioridade penal, ou seja, a maioria da população acha que adolescentes e jovens devem sofrer sanções legais como os adultos diante do cometimento de crimes. “Essa percepção é certamente derivada de uma combinação entre aumento da violência nas cidades e de políticos que apresentam em eleições continuadas desde, pelo menos 2010, o endurecimento das leis como solução efetiva para o fenômeno da violência urbana”, complementa a docente da UFF. 

Há um hiato no que diz respeito à forma como brasileiros de maior renda e escolaridade veem algumas questões. “A questão do aborto, do casamento entre pessoas do mesmo sexo e do chamado ‘casamento aberto’ são majoritariamente aceitas entre esses camadas mais abastadas. Fruto de um pensamento liberal que permeia a formação escolar e familiar desses grupos, muito em sintonia com perspectivas liberais europeias e norte-americanas. Quando analisamos essas questões entre os de menor escolaridade e renda o mapa é invertido”, comenta a pesquisadora.

Vital ressalta que a pesquisa de survey trata de percepções e valores morais de referência e não exatamente sobre como as pessoas vivem a suas vidas. “Tem mais a ver com o que o indivíduo acha certo ou errado, o que valoriza ou rejeita no presente ou em termos de expectativas. Sendo assim, o aborto, por exemplo, é uma situação que se coloca entre pessoas e famílias de vários segmentos sociais, mas, em termos de percepção, uns são mais favores enquanto outros menos”. 

A conclusão da parte qualitativa da pesquisa permitirá aprofundar as reflexões quanto ao imaginário sobre democracia do brasileiro, mas para a pesquisadora, a valorização do sistema democrático como melhor forma de condução da vida política e social não é incompatível com a demanda por melhorias em seu funcionamento, expressa por insatisfações. “Podemos dizer que uma pessoa que seja favorável ao casamento ou à família nuclear como instituições sociais vitais podem ser também críticas de como transcorrem a violência no interior tanto dos casamentos quanto das famílias, por exemplo”.

Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Pesquisa de valor: percepções do Brasil político-social

A coordenadora da pesquisa aponta que, desde a Constituinte, em 1986, é possível observar uma progressiva organização de religiosos na política institucional brasileira. Inicialmente, o foco destes atores recaía sobre cargos legislativos, sempre contando com o apoio de lideranças de grandes denominações religiosas às candidaturas.  

“Com o passar das eleições, foi se tornando mais visível a articulação de políticos e líderes religiosos em torno de eleições no legislativo, e no executivo nacional, estadual e municipal. O Poder Judiciário não escapou às articulações de religiosos, sobretudo cristãos nas últimas décadas. Retóricas explorando valores e sentimentos públicos vinham sendo observados por pesquisas qualitativas que se avolumaram e nesta pesquisa, através de diferentes metodologias qualitativas e quantitativas, buscamos identificar e analisar o campo de percepções dos brasileiros e suas expectativas em relação ao futuro próprio e do país”, relata Vital.  

Portanto, a docente reafirma a importância em identificar e compreender sentimentos, contradições e anseios para que os brasileiros se entendam como sociedade e para a produção de políticas públicas eficazes. “Contudo, cabe destacar que, muitas vezes, pesquisas de valores e opinião foram vistas somente como instrumento a serviço de campanhas eleitorais, interessadas em disputar mentes e corações, em vez de contribuir para um debate mais amplo e qualificado”, complementa.  

Nesse sentido, a professora destaca também que as pesquisas eleitorais visam compreender percepções sociais em um contexto de disputa política, logo, são influenciadas por estratégias partidárias. “Já a pesquisa nacional, realizada fora do período eleitoral e recobrindo dezenas de questões sobre percepções dos entrevistados, desde àquelas ligadas à confiança institucional e interpessoal àquelas ligadas às garantias de direitos, nos permite identificar valores morais de referência da população brasileira”.

Sumário da primeira fase: dados do survey

A pesquisa está organizada em três etapas. A primeira delas – o survey – consistiu na realização de uma enquete domiciliar nacional, desenvolvida em parceria com o Instituto DataFolha. As entrevistas foram conduzidas presencialmente, por meio de questionário estruturado, com duração média de 30 minutos. O universo da pesquisa abrange brasileiros de todas as classes sociais com 18 anos ou mais, residentes em domicílios particulares permanentes. A pesquisa teve abrangência nacional, contemplando todas as regiões do Brasil e municípios com mais de 20 mil habitantes, sem obrigatoriedade de inclusão de todas as capitais.

A amostra total foi de 1.500 entrevistas, garantindo representatividade estatística dos resultados. A margem de erro para o total da amostra nacional é de três pontos percentuais, para mais ou para menos. O questionário abrange uma ampla gama de temas como costumes, experiência religiosa, violência, gênero e sexualidade, questões raciais, percepções sobre política e ideologias – incluindo a autodeclaração no espectro entre esquerda e direita.

A segunda e a terceira fase da pesquisa envolvem, respectivamente, o acompanhamento de perfis em redes sociais e a realização de grupos focais segmentados por renda, gênero, religião, raça. O monitoramento das redes sociais conta com o auxílio de uma ferramenta de inteligência artificial, que permite identificar discursos, temas e imagens mais recorrentes, suas associações, alcances e autorias. 

O survey nacional foi finalizado e as análises de redes sociais e grupos focais estão em curso. A coleta de dados dessa segunda e terceira parte da pesquisa pretendem aprofundar algumas questões que emergiram na enquete, como indicativos de posicionamentos sociais, viabilizando uma identificação e análise mais consistente sobre o retrato atual de valores de brasileiros, do que lhes é caro, do que querem transformar e por quê.

O link do sumário executivo do survey está disponibilizado ao grande público, dando acesso a dados consolidados da enquete nacional. “A ampla divulgação dos dados é um compromisso assumido coletivamente. É a ciência em favor da sociedade e da produção de uma vida melhor para a coletividade e para os indivíduos”, conclui Vital. 

Acesse aqui o sumário com os dados do survey

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Christina Vital da Cunha é professora Associada do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal Fluminense. É bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Antropologia e Sociologia pela Universidade Federal do Rio (PPGSA/IFCS) e doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro PPCIS/UERJ com estágio no Centre de Recherche sur le Brèsil Contemporain na École de Hautes Études en Sciences Sociales. Coordena o Laboratório de estudos sócio antropológicos em política, arte e religião e integra a equipe de pesquisadores do MARES – Religião, arte, materialidade, espaço público: grupo de antropologia, coordenado por Emerson Giumbelli (PPGAS-UFRGS). É autora do livro ORAÇÃO DE TRAFICANTE: UMA ETNOGRAFIA (Ed. Garamond; FAPERJ, 2015) e co-autora de RELIGIÃO E POLÍTICA: MEDOS SOCIAIS, EXTREMISMO RELIGIOSO E AS ELEIÇÕES 2014 (2017), RELIGIÃO E CONFLITO (Ed. Prismas, 2016), RELIGIÃO E POLÍTICA: UMA ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO DE PARLAMENTARES EVANGÉLICOS SOBRE O DIREITO DE MULHERES E DE LGBTS NO BRASIL (2012), entre outros livros e artigos acadêmicos e em jornais e revistas nacionais e internacionais. Tem experiência em Antropologia da Religião e Urbana com ênfase nos seguintes temas: religião, política e demanda por direitos; religiões no judiciário; arte urbana e religião; religião e criminalidade violenta em favelas e periferias.

 

Por Fernanda Nunes
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