Projetos da UFF transformam a luta por direitos humanos no Rio com capacitação em ciências forenses e atenção psicossocial
A Universidade Federal Fluminense (UFF), por meio do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI-UFF), lidera dois projetos inovadores voltados para a defesa dos direitos humanos no Rio de Janeiro – o “Construindo Ferramentas” e o “Projeto Mirante”. Em andamento desde 2023, ambas as iniciativas são coordenadas pelo professor do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais, Daniel Veloso Hirata e visam à capacitação forense, com foco na produção de dados e evidências sobre transgressões institucionais, e ao apoio psicossocial às vítimas.
O “Construindo Ferramentas” busca a qualificação das metodologias para a produção de dados e evidências, a partir da colaboração interdisciplinar de especialistas em diferentes áreas, como psicólogos, estatísticos, arquitetos, médicos e outros profissionais. Em parceria da ONG Redes da Maré, o Núcleo de Atenção Psicossocial aos Afetados pela Violência de Estado (Napave) e o apoio do Ministério da Igualdade Racial, o projeto atua diretamente nas comunidades mais afetadas pela violência no Rio de Janeiro.
Já o “Projeto Mirante”, apoiado pela Secretaria de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública, tem parceria com as Defensorias Públicas do Rio de Janeiro e de São Paulo e se dedica à formação da linha de pesquisa em Ciências Forenses aplicadas aos Direitos Humanos, com atuação em casos concretos, produzindo laudos periciais, inclusive com o uso de recursos multimídia, para criar evidências com a intenção de fortalecer a justiça e garantir direitos às vítimas da violência institucional.
Esses projetos buscam enfrentar a escassez de dados, de provas materiais e a falta de qualificação no atendimento psicossocial, a fim de promover a justiça e o resgate da memória das vítimas de violência policial.
“Construindo Ferramentas” e a sua importância para a sociedade
O projeto “Construindo Ferramentas” dirige ações para a pesquisa forense, a produção de dados e evidências e a atenção psicossocial em situações de graves violações aos direitos humanos no Rio de Janeiro, tendo como objetivo construir metodologias para a investigação de casos de violência policial. “Qualificamos profissionais para atuar em três frentes fundamentais: a produção e análise de dados sobre violações aos direitos humanos, a pesquisa forense e a produção de evidências, além da atenção psicossocial às vítimas de violência de Estado”, explica Hirata.
A importância do projeto reside na capacidade de fornecer subsídios científicos que possam contribuir para complementar os dados oficiais sobre as violações dos direitos humanos, o que permite uma tomada de decisão mais qualificada em processos judiciais e políticas públicas. “O projeto, além de mapear e investigar casos de violência estatal, visa oferecer apoio psicológico e social às famílias das vítimas, para promover uma abordagem multidisciplinar para enfrentar as consequências das violações”, acrescenta o coordenador.

Reprodução: Arquivo pessoal do projeto
Contudo, a produção de dados e evidências sobre violência de Estado enfrenta uma série de desafios, com destaque para a escassez de informações oficiais detalhadas sobre operações policiais e suas consequências. “A falta de um banco de dados unificado e de metodologias padronizadas dificulta a sistematização e a análise de casos de violações aos direitos humanos. Isso impede que se tenha um panorama claro das violências ocorridas, e, logo, dificulta a formulação de políticas públicas e a busca por justiça nos casos em que há mortes decorrentes dessas operações”, comenta o professor.
O funcionamento do projeto na atenção psicossocial das vítimas
A atenção psicossocial às vítimas de violência institucional é uma das frentes essenciais do Construindo Ferramentas. O projeto realiza o atendimento em parceria com o Napave, que promove esse trabalho há mais de quarenta anos, e Redes da Maré, uma das maiores do Rio de Janeiro, que atua num conjunto de 16 favelas na região da Maré, onde as consequências da violência institucional são intensas.
De acordo com o coordenador, a atuação da ONG é fundamental, pois ela já realiza o mapeamento e a produção de dados sobre operações policiais e seus impactos. A atenção psicossocial oferecida pelo Napave tem como objetivo apoiar as vítimas e seus familiares, que, muitas vezes, enfrentam processos de revitimização ao longo das investigações e do sistema judiciário.
“A importância desse suporte está em ajudar os familiares a lidarem com o trauma, com o processo judicial e com os impactos da violência estatal, oferecendo-lhes o suporte necessário para superar esses momentos difíceis”, relata Hirata.
Uma das expectativas do projeto é trabalhar com o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) para expandir e garantir o atendimento de qualidade e especializado.

Reprodução: Arquivo pessoal do projeto
Projeto Mirante: aplicação das ciências forenses aos direitos humanos
O Projeto Mirante é uma iniciativa de pesquisa e extensão multidisciplinar que introduz uma linha de pesquisa também inédita na UFF, voltada para a aplicação das ciências forenses ao campo dos direitos humanos. Inspirado nas metodologias desenvolvidas pelo Equipo Argentino de Antropología Forense e pela arquitetura forense, a sua realização propõe um novo modelo de atuação no Brasil, além de proporcionar a produção de evidências científicas, a capacitação de profissionais e a criação de um novo campo de pesquisa.
A proposta “Mirante” inclui o desenvolvimento de cursos de extensão para capacitação de estudantes e profissionais de diversas áreas. “Além disso, o projeto trabalha diretamente na produção de laudos periciais e representações multimídia em 3D que podem ser utilizados como provas judiciais em casos de violações de direitos humanos, particularmente em operações policiais que resultam em mortes. Esse trabalho colabora diretamente com as Defensorias Públicas do Rio de Janeiro e de São Paulo, visto que subsidia o processo judicial com evidências científicas e torna mais robusta a base probatória para a justiça”, comenta o coordenador.

Reprodução: UFF / GENI
Com um investimento de R$ 2,8 milhões do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Projeto Mirante já atendeu 58 casos de violência institucional nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Com isso, a iniciativa se destaca pelo uso de metodologias avançadas, como modelagem 3D e análise geoespacial, o que permite a reconstrução detalhada de ocorrências e a revisão de laudos periciais.
Como reconhecimento da inovação e da eficiência, o Mirante conquistou o Prêmio Innovare 2024 na categoria Defensoria Pública, chancelando a importância do projeto na promoção da justiça e dos direitos humanos. O prêmio simboliza o sucesso da iniciativa, mas também a necessidade de expandir esse modelo de atuação para outros estados, pois fortalece a defesa dos direitos das vítimas e promove uma maior transparência nas investigações sobre violência policial.
Laudos periciais e uso de multimídia
Os laudos periciais e as apresentações multimídia são produzidos com base em metodologias científicas rigorosas, a fim de garantir que as evidências apresentadas no processo judicial tenham validade e sejam confiáveis. Assim, são elaborados a partir de investigações e análises forenses, com a utilização da tecnologia e do conhecimento acumulado na área, enquanto as apresentações multimídia servem para ilustrar os fatos e as evidências de uma forma clara e didática.
“A introdução de provas forenses e multimídia é especialmente importante em casos onde as provas materiais são limitadas, já que, muitas vezes, o único testemunho disponível é o de policiais. A qualificação dessas provas é essencial para fortalecer o processo judicial e garantir que as decisões judiciais sejam embasadas em uma análise objetiva e científica dos fatos”, explica Hirata.

Reprodução: Arquivo pessoal do projeto
A colaboração entre os projetos: defesa dos direitos humanos em foco
Embora os projetos Construindo Ferramentas e Mirante não estejam formalmente interligados, suas atuações se complementam de maneira significativa. Ambos têm um foco comum na utilização de dados e das ciências forenses para a defesa dos direitos humanos, mas cada um possui um escopo e uma abordagem distinta.
“Os projetos compartilham objetivos similares, por exemplo, a busca por justiça e a consolidação dos direitos humanos, entretanto, suas atividades operacionais se desenvolvem de forma complementar. O Mirante concentra-se mais na parte forense e judicial, enquanto o Construindo Ferramentas também atua na construção de uma rede de apoio psicossocial e na produção de dados que possam subsidiar ações judiciais e políticas públicas”, ressalta o professor.
O Construindo Ferramentas está negociando com a Prefeitura do Rio de Janeiro um Acordo de Cooperação Técnica (ACT), visando capacitar profissionais no atendimento psicossocial de vítimas de violência policial. Esse acordo envolve várias secretarias municipais e busca garantir que os profissionais atuem de forma qualificada, levando em consideração as especificidades das vítimas de violência institucional.
“A parceria terá um impacto positivo na qualificação dos profissionais que atendem as vítimas e seus familiares, pois contribui para a criação de uma rede de suporte mais robusta e eficiente. A formação contínua de profissionais capacitados é crucial para melhorar a qualidade do atendimento e garantir que as políticas públicas relacionadas ao suporte psicossocial sejam mais eficazes e duradouras”, relata Hirata.
Os projetos Construindo Ferramentas e Projeto Mirante geram um impacto significativo tanto na consolidação dos direitos humanos quanto na produção científica sobre o tema. Ambos os projetos contribuem para a produção de conhecimento científico e para o debate público sobre a violência policial, mirando na consolidação da defesa dos direitos humanos e no aprimoramento das políticas públicas no Brasil.
__________
Daniel Veloso Hirata é Professor do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (GSO/UFF), do Programa de Pós Graduação em Sociologia (PPGS/UFF) e do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF) ambos da Universidade Federal Fluminense. Coordenador do Núcleo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF).Pesquisador do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU-UFRJ) e do Núcleo de Pesquisas em Economia e Cultura (NUCEC-UFRJ). Affiliated Scholar do Brazil Lab (Princeton University).The Harry Frank Guggenheim Distinguished Scholar (2021).Atualmente bolsista Cientistas do Nosso Estado (FAPERJ) e Bolsista produtividade nível 2 (CNPq).Membro da Comissão permanente de Segurança Pública do Conselho Nacional de Direitos Humanos – CNDH (biênio 2020-2022,2023-24 e 2025-2026). Membro do GT “Polícia Cidadã” do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (2023-2024). Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, com estágio doutoral na Université de Toulouse-le Mirail e na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales.Tem interesse de pesquisa em mercados ilegais/informais, grupos armados e violência de estado.
Por Lívia Galvão
Quer enviar uma queixa ou denúncia, ou conteúdo de interesse coletivo, escreva para noticia@diariodeniteroi.com.br ou utilize um dos canais do menu "Contatos".