Trem das Flores – suas inspirações e sua homenagem à natureza

Trem das Flores começou diferente, inicialmente como um poema que me foi encomendado por um grande amigo, que havia sonhado…

Angela Puppim

Fragmentos do Agorar – Coluna de Crônicas do Cotidiano

Por Angela Puppim – Economista e Escritora.

Ilustrações: Luci Vilanova

O livro Trem das Flores, de minha autoria, foi lançado on-line na data de meu aniversário de 70 anos, 04 de junho de 2021, pela Edições Cândido, com belíssimas ilustrações de Luci Vilanova. Foi uma dupla comemoração: estar viva em plena pandemia do coronavírus e lançar o meu segundo livro.

Todo livro começa com uma ideia ou uma inspiração de seu autor ou de sua autora.

Trem das Flores começou diferente, inicialmente como um poema que me foi encomendado por um grande amigo, que havia sonhado com um trem que passava carregado de flores. O título sugerido por ele para o poema acabou dando nome ao livro.

Assim, a ideia/inspiração inicial do poema foi fruto de uma longa e sólida amizade, de mais de 47 anos, entre sua autora e seu grande amigo Cláudio.

Eu e Cláudio mantemos uma amizade desde a Faculdade de Economia da UFF, em Niterói, RJ, que frequentamos nos anos 70.  Éramos inseparáveis. Após as aulas saíamos para passear em sua moto e eram momentos incríveis. Sentíamos o vento batendo em nosso rosto e a liberdade pulsando em nossas veias. Tempos também sombrios, de ditadura no país, em que nós dois nos ancorávamos um ao outro, em nossos sonhos, medos e aspirações pessoais, profissionais e coletivas, enquanto estudantes de Economia engajados na luta pelo resgate de nossas liberdades individuais e coletivas, pela nossa democracia.

Seguimos por toda a vida nutrindo a nossa amizade, de alma e coração. Nos casamos, tivemos filhos, nos separamos. Vivemos a nossa juventude e maturidade, sempre nos amparando um ao outro em tempos de bonança, e também de sofrimentos e lutas.

Cláudio sofreu por muito tempo períodos de forte depressão, mas sempre preocupado com o Outro, fez de seu aprendizado com a doença uma forma de colaborar para o enfrentamento dessa grave enfermidade. Escreveu o livro Depressão – uma história de superação, que disponibiliza gratuitamente. https://claudiolivros.blogspot.com/2019/06/contatos.html

Em momentos cruciais de minha vida, Cláudio esteve presente. Rezando por mim é muito religioso, me ligando constantemente, se fazendo presente. Vibra com tudo que faço, e, em especial, com a minha incipiente carreira literária.

Certa manhã, Cláudio me ligou, revelando que tinha tido um sonho lindo com um trem carregado de flores que passava por uma linha férrea. Aí teve a ideia de me pedir para escrever um poema intitulado Trem das Flores; já havia pesquisado na internet e não encontrara poema com esse título.

Como é muito ansioso, fui logo escrever o poema Trem das Flores e logo, logo, enviei para ele, questionando se aqueles versos dialogavam com o seu sonho.  Cláudio me ligou em seguida, dizendo que tinha adorado e poema, e às gargalhadas me disse: — Você agora é igual a Chico Buarque, pois já faz poesia por encomenda!!! Esse era o meu objetivo, te mostrar isso…. Não tive sonho algum!!! Muitos risos em conjunto, muita alegria em nossos corações.

Paralelamente, no período em que ocorreu esse inusitado pedido de Cláudio para que escrevesse o poema que futuramente se transformaria no livro Trem das Flores, eu acabara de ler Ideias para Adiar o Fim do Mundo[i], de Ailton Krenak[ii], e estava particularmente afetada pelas suas teses e reflexões. Me permitam um breve resumo das provocações feitas por ele no livro.

Ailton questiona, em parte substancial da obra, a ideia que culturalmente nos é imposta de que existe uma separação entre a Terra e a Humanidade, ou seja, a alienação entre o humano e a natureza. Os resultados dessa visão restrita de mundo significam a perda do sentimento de pertencimento e um distanciamento do lugar de origem, bem como do vínculo com a identidade ancestral.

Para o autor, o antídoto para esse estado de coisas é a visão holística trazida na cosmovisão de muitos povos indígenas de que “Tudo é natureza”, tudo é  Cosmos, Natureza.

Para ele, a capacidade de adiar o fim do mundo está na qualidade de não desistir, na resiliência, na luta dos povos originários que resistem e insistem em adiar o fim do mundo. Nas palavras do autor:

Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. (p. 19)

E nos incita:

E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim. (p.19)

De que modo o autor nos convida a adiar o fim do mundo, a reinventar a sociedade?

  • sendo resilientes;
  • fortificando e preservando as nossas culturas e cosmovisões;
  •  “expandindo as nossas subjetividades, não aceitando essa ideia de que somos todos iguais”;
  • modificando a nossa relação com os demais integrantes da natureza;
  • sendo mais críticos em relação à ideia homogênea de humanidade que há muito se perdeu e que nos reduz a meros consumidores.

Compreender que não eram iguais foi a forma que os povos indígenas encontraram de resistir e sobreviver ao longo dos tempos.

Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil, me perguntaram: “Como os índios vão fazer diante disso tudo?”. Eu falei: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa”. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos. (p.22)

Despistar a queda. Krenak nos convoca:

Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos. (p.21).

Conclui falando do sonho e da terra:

Quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia. Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades. (p. 36)

Considero, a partir de tudo isso, sobre o contexto político do momento histórico que estamos vivenciando no mundo, em especial no Brasil. Testemunhamos a maior destruição deliberada do meio ambiente, em especial da Amazônia, estimulada pelo desgoverno atual; um superaquecimento global sem precedentes (vejam as queimadas na Europa). Enlevada pela profunda reflexão suscitada por Krenak, me ocorreu tentar frear um pouquinho a nossa queda; escrevi então o poema encomendado por Cláudio, posteriormente transformando-o num livro infantojuvenil, ou para todas as idades, como que para construir, tal como o sugerido por Ailton Krenak, um paraquedas cheio de flores coloridas, passageiras de um trem com destino à tão sonhada Estação da Paz.

O poema Trem das Flores se tornou um livro que deseja disseminar uma visão holística trazida pela cosmovisão de povos indígenas de que “Tudo é natureza”, é Cosmos, Natureza, e que devemos escutar nossos sonhos e agir, tal como nos ensinou Ailton Krenak.

Assim, no Trem das Flores as ilustres passageiras são diferentes tipos de flores que, através das janelas do trem, apreciam as paisagens de solos áridos e degradados pelo homem, e, comovidas, vão, com sua alegria contagiante, polinizando o ar ao longo de toda a linha férrea. Vão dando sua contribuição ao homem e transformando os cenários. Solidárias, querem “adiar o fim do mundo”.

O poema Trem das Flores se transformou nesse livro e contém muitos polens a serem germinados nos corações dos que têm a utopia de um mundo melhor, onde a paz seja verdadeiramente conquistada pelos homens, através do amor genuíno à natureza, pois somos Cosmos, em uma simbiose perfeita com a natureza, da qual somos pequenas sementes.

Gratidão ao amigo Cláudio D. Alvares de Castro, a quem dedico esse livro, na certeza de que os leitores sentirão, a cada percurso desse trem, um ressemear de sonhos e utopias em seus corações. E que possamos “adiar o fim do mundo” para um tempo bem distante, transformando nossa visão de mundo e nossas ações.

Existem ainda inúmeras possibilidades de nos reinventarmos e criarmos “paraquedas” que façam com que a nossa estadia neste lugar chamado Terra seja mais saudável, tanto para nós, quanto para nosso planeta, e, principalmente, que vivamos a Paz em paz, em harmonia com nossa essência, nossa Natureza e nossos Sonhos.

Para finalizar, fiquemos com o poema Trem das Flores.

Trem das Flores

Vem tocando seu apito.

Trazendo perfumes pelas linhas do trem.

Lá vem o trem carregado de flores a polinizar o ar.

No primeiro vagão, os Amores Perfeitos de multicolores tons acenam e gritam pra toda gente: “abram os corações que o Amor está no ar!”

No segundo, as minúsculas Violetas de todas as cores tão unidas, não podem se separar.

No terceiro, os Girassóis, com seus tons dourados a brilhar, brincam de mudar de lugar a toda hora, para o sol melhor capturar.

As Dálias e os Crisântemos apreciam as paisagens dos campos áridos e vão jogando seus polens no ar.

Lá vem o trem carregado de flores a polinizar o ar.

No vagão mais perfumado viajam as Rosas com suas inigualáveis belezas.

Tem Rosa tomando chá, buquê de Rosas Brancas voando no ar a rodopiar.

As Rosas Vermelhas exalam seus inebriantes perfumes, em revoadas apaixonantes, para os corações sem amor fecundar.

Lá vem o trem carregado de flores a polinizar o ar.

Os Cravos Vermelhos nas janelas acenam e bradam seus gritos de liberdade.

A Locomotiva, guiada pelo Lírio Branco, conduz todo o comboio, de unidos vagões florados que fluem com leveza sobre os solos áridos, os trilhos da discórdia, as encruzilhadas das guerras, as emboscadas da morte, até chegarem à última estação da Paz.

Viva a Amizade!

Viva a Natureza!

Viva a Primavera!

Vida a Vida!

Viva!


[1] O livro Trem das Flores pode ser adquirido com a autora através do e-mail angelapuppim65@gmail.com

Ideias para Adiar o Fim do Mundo, Ailton Krenak, baixado do site da Le Livros e seus parceiros que disponibilizam conteúdo de domínio público e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.com ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link:  http://ww12.lelivros.com/ .”Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.” LeLivros.com

[1] Ailton Krenak é ambientalista, jornalista, educador, escritor e líder indígena de renome nacional e internacional. Residente em Minas Gerais, foi responsável pela conquista do “Capítulo indígena” da Constituição de 1988, que decretou os direitos das terras indígenas. Fundou na década de 80 a organização não governamental “Núcleo de Cultura Indígena”, e desde então passou a se dedicar exclusivamente aos movimentos indígenas. Na década de 90, participou da Aliança dos Povos da Floresta, cujo objetivo era estabelecer uma reserva natural na Amazônia para sustentar a economia com a extração da borracha do látex e outros produtos naturais. Atuou como professor de Cultura e História dos Povos Indígenas da UFJF e de Artes e Ofícios dos saberes tradicionais. É ganhador de Prêmios de reconhecimento nacional e internacional. Para conhecê-lo melhor, acessem o link https://acervo.museudapessoa.org/pt/conteudo/historia/rio-de-memorias-44619

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