Vidas Severinas+


Junho: mês do meu aniversário de71 anos, que comemoro com muita alegria; afinal, estou viva, tive a oportunidade de uma prorrogação concedida pela Senhora Morte.

Vou me explicar: no ano de 2015 tive um inesperado encontro com a Senhora Morte; ela era relativamente jovem, simpática e cheia de vida, por isso não me assustou; apesar da boa impressão que me causou, fui tomada por uma imensa perplexidade − não havia me preparado para encontrá-la. Apresentou-se e indagou se eu gostaria de fazer-lhe companhia num passeio pela eternidade. Descreveu com entusiasmo o paraíso eterno e ficou me observando com um sorriso suave e acolhedor, ansiosa pela minha resposta.

Por 21 dias, tempo em que permaneci hospitalizada, refleti sobre o convite e sobre a resposta que daria. Estaria a Senhora Morte me oferecendo uma oportunidade de ascender ao paraíso? Ou, ao contrário, me convocava a viver mais um pouco, dando um sentido maior à vida, assumindo o compromisso de lutar por vidas que não fossem severinas?

Sou uma pessoa privilegiada, não tive e não tenho uma vida severina. Essa constatação resultou do balanço que fiz de minha vida, das lutas, das conquistas. Um saldo positivo.

As vidas severinas de João Cabral de Melo Neto, imortalizadas no poema “Morte e Vida Severina”, me servem de inspiração: “Só morte tem encontrado/ quem pensava encontrar vida/ e o pouco que não foi morte/ foi de vida severina/(aquela vida que é menos/ vivida que defendida, / e é ainda mais severina/ para o homem que retira).”

Essas são as vidas da maioria do povo que sobrevive no Brasil e que luta em demasia, seja para estar vivo, dia após dia, seja para matar a fome, seja para sair da miséria; seja pelo futuro distante, pelo sonho de que a vida não é só o direito à comida. As tantas vidas e mortes severinas da expressão poética de João Cabral:

E se somos Severinos/ iguais em tudo na vida, / morremos de morte igual, / mesma morte severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta, / de emboscada antes dos vinte, / de fome um pouco por dia/ (de fraqueza e de doença/ é que a morte severina/ ataca em qualquer idade, / e até gente não nascida).

Morte e Vida Severina | Animação – Completo https://www.youtube.com/watch?v=clKnAG2Ygyw

Parecia absurdo o fato de eu estar diante da morte, fazendo um balanço de minha história de vida e ponderando sobre os privilégios de não ter tido aquela vida severina. Certamente, a Senhora Morte estava avaliando o “saldo superavitário” de minha existência e vinha cobrar a fatura, refletia eu.

De fato, a Senhora Morte teria toda razão ao tecer esse juízo de valor: não tenho vida igual à da maioria de meus semelhantes, que não são tão semelhantes assim, devo dizer: suas trajetórias de vida, tão distintas da minha, são determinadas por suas condições de nascimento, por sua classe social, por sua cor.

Esses pensamentos recorrentes foram me conduzindo à resposta que daria a Senhora Morte: — Agradeço a inesperada visita e o delicado e tentador convite, mas a vida me convoca à luta: por minha vida e por tantas vidas severinas.

Hoje estou viva e luto, a Senhora Morte foi generosa comigo. Agradecida, comemoro: Viva! Viva! Viva!

Gostaria de, nesta crônica do mês em que comemoro o meu aniversário, relatar esta minha experiência e convidá-los(las) à reflexão.

Passar por experiência de quase morte nos transforma. Renascemos melhores. Reinventamos um novo modo de estar vivos. Trata-se de um despertar, a partir do qual passamos a valorizar a maior riqueza que possuímos: nossa incompletude. Tomamos consciência de que ela nos acrescenta, de que precisamos ser outros — renovando-nos, usando borboletas para isso, na feliz expressão do poeta Manoel de Barros em “Retrato do artista quando coisa”:

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

Passamos a compreender que a vida é cheia de Pequenas Mortes, que podem, então, representar a morte de uma etapa, de um ciclo, de um momento vivenciado. E que elas nos levam a alçar novos projetos, sonhos, utopias, e a desejar, profundamente, lutar e revolucionar, mudar o mundo para melhor, cuidando de fazer a nossa parte.

Também passamos a valorizar as Pequenas Mortes como a culminação do amor, de abraços, de elos com os outros, de gestos tais como aqueles expressos na frase “ninguém larga a mão de ninguém”.

O escritor Eduardo Galeano nos permite refletir profundamente sobre o sentido dessa Pequena Morte que ora procuro retratar, por isso o convoco aqui:

Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu voo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce. (O Livro dos Abraços).

Comemorar a vida, especialmente no contexto pós-pandemia atual, em que só o Brasil registrou mais de 665.000 mortes; nesses tempos em que a natureza expressa sua exaustão, após tanta destruição; depois que o isolamento social nos fez sentir e valorizar o estar junto: com nossos familiares, nossos amigos, com o outro; quando muitas vidas continuam a ser severinas; num tempo em que o neonazismo sai das sombras no Brasil e no mundo; no momento em que a nossa democracia está em risco e sofre constantes ameaças de golpe; em dias nos quais a possibilidade de guerras mundiais está colocada − celebrar a vida, diante de todo esse cenário, requer de todos(as) nós uma profunda reflexão sobre os sentidos que queremos dar a ela, não apenas à nossa vida, mas àquela que nos insere coletivamente no mundo.

Que mundo queremos?, devemos nos perguntar:

Queremos um mundo de vidas severinas? Ou queremos renovar o homem e o mundo usando borboletas?

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