Semana de quatro dias: pesquisa da UFF analisa o experimento brasileiro que repensa a jornada de trabalho
Com as transformações profundas no mundo do trabalho, incluindo o debate público sobre o fim da escala 6×1 no Brasil, um experimento inédito vem desafiando o modelo tradicional de jornada: o 4 Day Week Brazil. Inspirado em iniciativas internacionais, o programa propõe que empresas adotem uma semana de quatro dias, com 100% do salário e 80% do tempo de trabalho, mantendo a produtividade integral.
Na Universidade Federal Fluminense (UFF), a pesquisa de mestrado em administração intitulada “Motivações, paradoxo e ressignificação do trabalho nas experiências brasileiras da semana de quatro dias”, conduzida por Alexssandro Moreira Tavares sob orientação do professor Bruno Chapadeiro Ribeiro, investigou como empresas brasileiras estão vivenciando essa mudança. O estudo foi realizado como parte de uma parceria entre a Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-EAESP) e a UFF, em acordo de cooperação técnica.
O experimento 4 Day Week Brazil já reúne dezenas de organizações que buscam equilibrar bem-estar, desempenho e testar se é possível reduzir o tempo de trabalho sem comprometer resultados. A experiência, conduzida em empresas de diversos setores, avalia se é viável reduzir a jornada e, ao mesmo tempo, preservar o desempenho.
“A iniciativa contribui para o debate sobre a revisão da jornada legal no Brasil. Sua adoção por organizações privadas demonstra que a discussão também passa a integrar as agendas de gestão. Diante das transformações nas formas de trabalhar e da atuação de movimentos sociais que contestam a lógica da disponibilidade infinita, a proposta da semana de quatro dias se insere em um movimento mais amplo de ressignificação do trabalho e do tempo livre”, comenta Tavares.
Mais do que uma mudança na agenda corporativa, o projeto coloca em foco o sentido do trabalho, a valorização do tempo livre e os limites da cultura da produtividade em um país ainda marcado por longas jornadas e pela escala 6×1. Nesse contexto, a iniciativa amplia o debate sobre o descanso como dimensão legítima da vida social e da organização do trabalho.
“Além disso, as iniciativas legislativas em tramitação no Congresso Nacional sobre o tema, podem impulsionar a redução da jornada de trabalho como uma resposta multifacetada aos desafios contemporâneos do mercado de trabalho. Isso reflete uma tendência global em direção a um equilíbrio melhor entre vida profissional e pessoal, e também uma medida para impulsionar a economia, aumentar a produtividade e combater o desemprego estrutural.”, complementa o pesquisador.
O experimento 4 Day Week Brazil: motivações, desafios e resultados da jornada de quatro dias
A partir de 21 entrevistas com gestores de empresas que testaram o modelo, a pesquisa de mestrado revelou que a adoção da semana de quatro dias combina objetivos organizacionais e preocupações com a qualidade de vida dos trabalhadores. Entre as principais motivações estão o aumento da produtividade, a valorização da saúde mental, a atração e retenção de talentos e o fortalecimento da imagem institucional.
Foto: Site 4 Day Week Brazil
Segundo Tavares, “a decisão de aderir ao 4 Day Week Brazil foi guiada por múltiplos fatores que articulam desempenho e bem-estar. As empresas aderentes ao programa buscaram equilibrar eficiência e qualidade de vida, sem abdicar da competitividade.”
Embora o projeto tenha sido concebido com abrangência nacional e amplamente divulgado em todo o território brasileiro, as organizações participantes do programa piloto ficaram concentradas na região Sudeste. O modelo apresentou maior adesão em organizações de pequeno e médio porte, com estruturas menos hierarquizadas, em áreas em que já predominam práticas orientadas a resultados e maior autonomia na gestão do tempo, que juntas corresponderam a mais de 47% das organizações participantes.
Muitas dessas empresas já adotavam modalidades flexíveis, como home office ou regime híbrido, o que facilitou a transição para a jornada reduzida. Esse perfil indica que o experimento se concentrou em organizações inovadoras e voltadas ao bem-estar, mais dispostas a testar novos formatos de trabalho. Em contraste, setores com forte controle da jornada — como indústria, comércio e serviços essenciais — enfrentam maiores obstáculos para implementar o modelo sem alterações estruturais profundas.
Os segmentos de tecnologia, consultoria, inovação, comunicação e mídia, juntos, corresponderam a quase metade das empresas participantes. Também houve presença de empresas de design, arquitetura e serviços especializados — todos integrantes da chamada “indústria criativa”, ou economia do conhecimento, em que flexibilidade e autonomia são valores centrais. Uma exceção foi uma empresa do ramo alimentício, que aplicou a redução apenas ao setor administrativo, devido ao alto custo de estender a medida às áreas operacionais.
Outro ponto observado foi o regime de contratação: parte das empresas utiliza vínculos via pessoa jurídica (PJ), por opção dos próprios trabalhadores, que buscam maior retorno financeiro. Ainda assim, algumas oferecem benefícios semelhantes aos do regime CLT, como previdência e férias remuneradas, o que reflete numa gestão flexível.
De modo geral, os gestores relataram ganhos em produtividade e engajamento, além de melhorias no clima organizacional. As entrevistas apontam que a redução da jornada está associada a menor estresse, melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional e valorização da saúde mental. Em alguns casos, o novo formato também reforçou a retenção de talentos e a atratividade da marca empregadora.
Para o pesquisador, “a redução da jornada foi interpretada não como um benefício isolado, mas como parte de uma estratégia de reorganização do trabalho. As empresas perceberam que é possível alcançar bons resultados, desde que haja gestão e confiança.”
Apesar dos avanços, entre os desafios externos estão a resistência de clientes e conselhos administrativos, além de barreiras culturais. Seguindo a predominância da pesquisa, nas regiões Sul e Sudeste ainda prevalece a ideia de que a busca por equilíbrio entre vida pessoal e profissional indica falta de comprometimento.
Também persistem dúvidas sobre os impactos econômicos e ideológicos da proposta. Internamente, os principais obstáculos envolvem reorganizar o trabalho para manter a produtividade em menos tempo, sem sobrecarga. A otimização das tarefas pode reduzir espaços de convivência, das trocas e alterar a dinâmica social no ambiente de trabalho. Um dos gestores resumiu o desafio: “Não se trata de trabalhar mais em quatro dias, mas de trabalhar melhor.”
Foto: Freepik
Embora os resultados sejam amplamente positivos, o pesquisador ressalta que o modelo ainda opera sob a lógica da eficiência. “A maioria das empresas espera manter ou ampliar o desempenho sem aumentar custos, ou força de trabalho. Assim, a semana de quatro dias é vista como um benefício condicionado à produtividade, e não como uma ruptura com o produtivismo”, explica. Segundo Chapadeiro, orientador da pesquisa: “tal iniciativa está mais vinculado às políticas de benefícios típicas dos RHs do que atrelado à um direito social, o que denota uma fragilidade da iniciativa”.
Tavares acrescenta que essa contradição é central: “O grande desafio é promover o bem-estar sem romper com a cultura da eficiência. O modelo nasceu como proposta de equilíbrio, mas ainda depende de resultados concretos para se legitimar nas empresas brasileiras.”
Mesmo assim, os dados apontam avanços consistentes em engajamento, motivação e satisfação profissional, sinais de que a reorganização do tempo de trabalho pode gerar valor tanto humano quanto econômico.
Valorização do tempo livre como desenvolvimento humano
A adesão de empresas privadas ao experimento 4 Day Week Brazil mostra que o debate sobre a jornada de trabalho, ainda que ancorado em lógicas gerenciais, começa a tensionar os limites da legislação vigente, resultado de contextos históricos e disputas políticas que moldaram as questões trabalhistas no país. O movimento indica uma abertura crescente das organizações para discutir o papel do tempo na vida dos trabalhadores.
“Diante das transformações nas formas de trabalhar e da atuação de movimentos sociais que contestam a lógica da disponibilidade infinita, a proposta da semana de quatro dias se insere em um movimento mais amplo de ressignificação do trabalho. Ela responde, ao mesmo tempo, às demandas contemporâneas por produtividade e competitividade, assim como demonstra que é possível reorganizar o tempo de trabalho e refletir sobre o lugar que ele ocupa na vida das pessoas”, explica Tavares.
Mais do que uma simples reorganização de jornada, a pesquisa aponta que a experiência integra uma revisão gradual do papel do trabalho na vida social, evocando ideais de equilíbrio entre esforço produtivo e qualidade de vida. A jornada de 44 horas semanais, estabelecida na etapa industrial do capitalismo, já não reflete as condições culturais e sociais atuais. Nesse cenário, ampliar o debate sobre o tempo livre torna-se parte fundamental da construção de novas formas de viver e produzir.
Foto: Freepik
“A valorização do tempo livre pode ser entendida como parte de um projeto mais amplo de desenvolvimento humano, que inclui o direito ao lazer, à vida familiar e à participação social. Esses elementos sempre estiveram presentes nas lutas por justiça no mundo do trabalho”, ressalta o pesquisador.
Embora o estudo não tenha avaliado os impactos após a implementação, os resultados mostram que a simples decisão de adotar a semana reduzida já provocou reflexões profundas sobre o valor do tempo. “Para alguns gestores, a medida representou uma estratégia de gestão voltada a ganhos de desempenho, engajamento e retenção de talentos. Para outros, simbolizou uma oportunidade de humanizar o trabalho, reduzindo estresse, promovendo saúde mental e reconhecendo o tempo livre como dimensão legítima da vida. Essa ambiguidade evidencia que, mesmo em um paradigma ainda produtivista, a experiência abriu espaço para ressignificar o valor do tempo e questionar a centralidade absoluta do trabalho”, analisa o mestre Alexssandro Moreira Tavares.
Assim, mais do que uma política de gestão, o reconhecimento do descanso como direito social deve ser visto como parte de um processo civilizatório, que reposiciona o tempo como valor coletivo e promove maior equidade nas condições de vida. “Reconfigurar as relações laborais contemporâneas exige não apenas inovação organizacional, mas também o comprometimento do Estado em garantir aos trabalhadores o acesso ao tempo livre. Trata-se de ampliar o horizonte do desenvolvimento humano para além da produtividade”, ressalta o pesquisador.
O papel do Estado no debate sobre o aumentos dos dias de descanso como direito coletivo
De acordo com os resultados observados pelo pesquisador, torna-se evidente a necessidade de que o Estado assuma um papel ativo na reconfiguração das relações laborais, por meio de políticas públicas que estimulem a redução da jornada legal de trabalho.
“As transformações nas dinâmicas produtivas e as demandas sociais por mais equilíbrio entre vida profissional e pessoal indicam que essa agenda não pode depender apenas de iniciativas voluntárias do setor privado. A limitação das experiências atuais ao âmbito empresarial evidencia a ausência de um marco normativo capaz de induzir mudanças mais amplas e duradouras”, observa Tavares.
Ao tensionar a lógica da jornada 6×1, o experimento brasileiro mostra que discutir o tempo de trabalho é também discutir justiça social — e que o tempo livre pode, enfim, se afirmar como um direito coletivo.
Atualmente, tramitam no Congresso Nacional mais de 30 proposições legislativas relacionadas à redução da jornada, baseadas em justificativas que buscam alinhar o país às tendências globais. Em diversas nações europeias, cresce a adoção da semana de quatro dias como estratégia para melhorar a qualidade de vida, aumentar a produtividade e estimular a geração de empregos.
Essas propostas reforçam que há respaldo social e político para a discussão, cuja continuidade exige institucionalização e regulação pública. O desafio, segundo Tavares, é “fazer com que a iniciativa extrapole o campo das empresas inovadoras e se consolide como política de Estado”.
Foto: Davi Pinheiro/Divulgação
Para Chapadeiro, a pesquisa qualifica o debate a partir da discussão da redução da jornada laboral sem alterar também a organização do trabalho pode levar a uma intensificação do trabalho: “Se a carga de trabalho não for também reduzida, a pessoa que antes tinha cinco dias para uma entrega ou bater uma meta, passará a ter quatro. Reduz-se a jornada, porém intensifica-se o trabalho”. Caso a remuneração também não entre na pauta da discussão, o dia livre não será necessariamente associado a descanso, mas sim, a mais trabalho. “No dia de folga a pessoa pode acabar pegando bicos para complementar a renda insuficiente advinda do trabalho principal”.
Há uma dimensão de classe e suas interseccionalidades importante que evidencia a questão sobre a quem chegará e quem poderá fazer a semana de quatro dias: “Se caminhamos para o aumento da precarização dos vínculos de trabalho, com ampliação da informalidade e plataformização do trabalho que gera insegurança jurídica e instabilidade social, a pessoa que faz sua renda todos os dias a partir de suas entregas, poderá usufruir da jornada de quatro dias?”, acrescenta Chapadeiro.
Assim, os resultados da pesquisa podem contribuir para o avanço de políticas públicas e alimentar o debate promovido por movimentos sociais como o Vida Além do Trabalho (VAT), que defendem a redução da jornada como um direito e não um privilégio. “No contexto da pesquisa, embora empresas e movimentos desafiem o modelo vigente, suas estratégias são distintas. As organizações atuam dentro da lógica de mercado ao buscar produtividade, retenção de talentos e bem-estar. Já os movimentos sociais reivindicam transformações estruturais, por meio da legislação e da ação estatal. Portanto, a consolidação da semana reduzida como direito social depende de um marco normativo que amplie e sustente essas iniciativas de forma abrangente”, conclui Tavares.
Alexssandro Moreira Tavares é Mestre Acadêmico em Administração na Universidade Federal Fluminense, pesquisa sobre administração brasileira. Possui graduação em Administração pela Faculdade de Educacação e Ciências Administrativas de Vilhena (2004), especialização em Gestão Empresarial e Recursos Humanos pela Faculdade da Amazônia (2008) e graduação em Ciências Contábeis pela Rede Gonzaga de Ensino Superior (2011). Membro do Grupo de Pesquisa LAPOSTE – Laboratório de Pesquisa em Psicologia, Organizações, Saúde, Trabalho e Educação, da Universidade Federal Fluminense. Atua como gestor de contratos, além do setor de licitações e compras e função de pregoeiro.
Bruno Chapadeiro Ribeiro é Psicólogo (2009) e Mestre em Ciências Sociais (2013) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2018) com período sanduíche na École des hautes études en sciences sociales (EHESS/Sorbonne) em Paris, França e Pós-Doutorado em Saúde Coletiva pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF). Cadastrado nos Grupos de Pesquisa CNPq Núcleo de Estudos Trabalho, Saúde e Subjetividade (NETSS/Unicamp) e no Laboratório de Pesquisa em Psicologia, Organizações, Saúde, Trabalho e Educação (LAPOSTE/UFF). Membro de Diretoria (gestão 2024-2026) da Associação Brasileira de Ergonomia (ABERGO) onde coordena o Comitê Técnico Saúde Mental e Riscos Psicossociais Relacionados ao Trabalho e da Associação dos Docentes da UFF (gestão 2025-2027). Atua nos GTs Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), Trabalho, Subjetividade e Práticas Clínicas da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), Trabalho, Gestão e Saúde Psicossocial do Conselho Federal de Psicologia (GTPOT-CFP) e no Observatório Nacional de Saúde Mental e Trabalho.
Por Fernanda Nunes.
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