Ciência e reciclagem: UFF transforma copos plásticos descartáveis em sensores eletroquímicos de alta performance
Transformar lixo em ciência de ponta: essa é a proposta de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF), que desenvolveu sensores capazes de analisar a presença de medicamentos na água ou em alimentos a partir de copos plásticos descartados. A ideia, liderada pelo professor Rafael Dornellas, do Programa de Pós-Graduação em Química (PPGQ/UFF), confere novo destino a materiais que normalmente poluem o meio ambiente, como o poliestireno, presente nos copos usados em festas e escritórios. O uso do poliestireno para esse tipo de impressão é inédito e o laboratório foi o primeiro no mundo a produzir esta inovação que alia sustentabilidade, economia circular, e tecnologia de impressão 3D.
O estudo aponta que os plásticos ainda são reciclados em baixas taxas em instalações industriais. Portanto, um sistema de reciclagem mais descentralizado, que inclua a produção de filamentos para impressão 3D, poderia aumentar as taxas de reaproveitamento de uma forma econômica e ambientalmente sustentável.
A inspiração do projeto nasceu com base no cotidiano do laboratório e revelou como a observação atenta do pesquisador pode gerar grandes descobertas. Conforme explica Dornellas, a ideia surgiu com a insatisfação do acúmulo de copos no lixo. “No dia a dia, notei que usávamos com frequência os descartáveis para beber água e isso me incomodava, já que gerava um acúmulo de plástico no lixo”. A partir desse incômodo, a equipe pensou em substituir o material comercial usado na impressão 3D pelo poliestireno que já é jogado fora. Assim, nasceu o projeto pensado para reaproveitar os copos e transformá-los em algo útil para a ciência e, simultaneamente, para o meio ambiente.
Do descarte à alta tecnologia
A pesquisa, publicada na revista internacional Talanta, mostra que o poliestireno, material usado nos copos de plástico, pode ser reaproveitado e combinado com partículas de grafite para criar sensores eletroquímicos eficientes e sustentáveis. Esta abordagem permitiu o desenvolvimento do primeiro dispositivo no mundo impresso em 3D que utiliza copos plásticos reciclados.
“Na prática, a impressão 3D normalmente usa fios (filamentos) plásticos comerciais para construir peças. Nessa lógica, pensamos na substituição por um material que já foi descartado. Lavamos os copos com água e sabão, cortamos, misturamos com grafite e um composto químico que permite ‘derretê-lo’. Depois de seco, esse material vira um fio, o mesmo usado para impressão 3D, e então imprimimos o sensor. O grafite confere propriedades elétricas ao plástico. Quando uma amostra entra em contato com o sensor, essas propriedades mudam de maneira que nos permite perceber se uma substância está presente e, dependendo do caso, estimar o quanto há dela na amostra”, explica Dornellas.
No entanto, o feito inédito exigiu a superação de desafios técnicos complexos. O maior obstáculo, segundo Dornellas, foi resolver a questão prática de adequar um material de descarte para a impressão 3D, que garantisse sua funcionalidade e as propriedades mecânicas necessárias, sem comprometer a simplicidade do processo. “Provar isso em um dispositivo funcional e publicá-lo internacionalmente demonstra que ideias simples podem gerar inovações reais e obter reconhecimento internacional.”
A pesquisa fez testes no dispositivo com a sulfanilamida, um antibiótico e possui um vasto espectro de atividade antimicrobiana, amplamente utilizada no tratamento de infecções do trato urinário, infecções vaginais, faringite estreptocócica e algumas infecções por estafilococos. O professor explica que devido à sua estrutura, este composto é altamente estável e difícil de biodegradar. “A sulfanilamida pode contaminar corpos d’água, entrar na cadeia alimentar e agravar a resistência dos organismos aos antibióticos, o que pode levar a sérios problemas na saúde humana, bem como questões ambientais”.
Foto: Artigo
O pesquisador conta que o dispositivo com sulfanilamida foi testado como exemplo e obteve bons resultados. “O princípio por trás da tecnologia é aplicável a qualquer composto que sofra reações de oxidação ou redução na região de trabalho do sensor. Em outras palavras, a plataforma tem potencial para ser adaptada a muitas outras substâncias, com ajustes nas condições de medição”, acrescenta. Os sensores já se mostraram eficazes na análise de medicamentos no leite e na água, com recuperações próximas a 100%, evidenciando o potencial do novo material para monitorar substâncias que podem prejudicar a saúde.
O próximo passo da pesquisa é enviar o dispositivo para grupos de pesquisa parceiros no Brasil, para poderem testá-lo em outras circunstâncias. “Paralelamente, estamos buscando formas ainda mais simples de reaproveitar este e outros materiais descartados para criar dispositivos funcionais e aumentar a sua escala de produção. Além disso, estamos negociando parcerias com alguns grupos de pesquisa da universidade e setores da sociedade para o fornecimento do material descartado, com a ideia de transformar esse resíduo em matéria-prima para aplicações analíticas e outras finalidades úteis à comunidade”, relata Dornellas.
A pesquisa se consolida como uma estratégia prática de economia circular, que abre caminho para novas formas de produção mais sustentáveis no Brasil. Dornellas aponta que a mensagem da pesquisa é direta: a ciência pode transformar lixo em recursos valiosos. “Em vez de ver plástico descartável apenas como poluição, podemos reaproveitá-lo para criar tecnologias úteis, sustentáveis e acessíveis. É aplicara economia circular no cotidiano, reaproveitar para inovar e gerar soluções que beneficiem a sociedade e o meio ambiente”.
Valorização da inovação na ciência
O projeto contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), além da dedicação da aluna de iniciação científica Natália Marinho Caldas. “Grande parte do trabalho experimental foi realizado pela Natália, cuja dedicação foi essencial para a criação do dispositivo. Valorizo muito a iniciação científica, pois é nela que formamos pesquisadores, estimulamos curiosidade e responsabilidade. O investimento na formação desde a base tem trazido resultados concretos”, pontua o professor.
Professor Rafael Dornellas e Nathalia Caldas apresentando a pesquisa na 77ª Reunião do Anual da SBPC. Foto: Arquivo do professor.
Natália recebeu prêmios, incluindo o Prêmio Vasconcelos Torres de Iniciação Científica da UFF em 2024 e o 22º Prêmio de Destaque em Iniciação Científica do CNPq em 2025. Para o pesquisador, “isso reflete a qualidade do trabalho e o empenho dos estudantes no nosso grupo de pesquisa, o Laboratório Peter Sorensen de Química Analítica. Ver os jovens pesquisadores, como Natália, se destacando no cenário nacional e produzindo trabalhos reconhecidos internacionalmente me enche de orgulho e confirma que estamos no caminho certo na formação acadêmica”, conclui.
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Rafael Machado Dornellas é Doutor em Química (Química Analítica) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio (2014). Mestre em Química (Química Analítica) pela Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF (2009) e graduado em Química pela UFJF (2007). Realizou estágio de pós-doutorado em Química Analítica na Universidade Federal de Uberlândia (2014-2017). É Professor Adjunto (nível 3) do Departamento de Química Analítica (GQA) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e um dos coordenadores do Laboratório Peter Sorensen de Química Analítica (UFF), onde lidera pesquisas em impressão 3D, química de materiais, eletroquímica, eletroanálise e instrumentação analítica. É membro efetivo da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) e da Sociedade Brasileira de Eletroquímica e Eletroanalítica (SBEE). Foi ganhador do Prêmio Jovem Pesquisador Fluminense (Sociedade Brasileira de Química, Regional Rio de Janeiro). Orientou/coorientou 8 alunos de pós-graduação, sendo 4 dissertações de mestrado e 4 teses de doutorado; supervisionou 2 pós-doutorados, 35 alunos em iniciação científica e 2 TCCs. Uma das orientações de iniciação científica obteve o 1 lugar no 22. Prêmio Destaque na Iniciação Científica e Tecnológica do CNPq. É bolsista no programa Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Faz parte da comissão organizadora do “Encontro Brasileiro sobre Sensores e Biossensores Eletroquímicos” desde sua primeira edição (2024).
Por Fernanda Nunes
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