Mais de 90% dos educadores no Brasil já sofreram ou presenciaram censura, indica pesquisa da UFF
Uma pesquisa inédita da Universidade Federal Fluminense (UFF) mostra que quase todos os profissionais de educação do Brasil já sofreram ou testemunharam ataques, ofensas e constrangimentos entre 2010 e 2024. “Um estudo quantitativo da perseguição a educadoras/es no Brasil”, levantamento produzido pelo Observatório Nacional da Violência contra Educadoras/es (ONVE), é um dossiê dos principais dados sobre a violência provocada contra todas as esferas educacionais, que vão desde as merendeiras e porteiros, até os professores e diretores de escolas de norte ao sul do país.
“A violência é uma ideia ampla”, explica Renata Aquino, pesquisadora e uma das autoras da pesquisa. “Se nosso relatório fosse apenas sobre violência física, conseguiríamos buscar os números no Departamento de Informação e Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS), em boletins de ocorrência da Polícia Civil e outros bancos de dados junto a diversos poderes públicos. Porém, o tipo de violência que pesquisamos decorre de ações de censura contra a liberdade de ensinar e aprender”.
Os dados coletados de 3.012 respondentes pelo projeto de extensão da Faculdade de Educação (FEUFF), com o financiamento do Ministério da Educação (MEC), indicam que a quantidade de educadores que nunca sofreu, presenciou ou soube de alguma violência contra outros profissionais é irrisória. Eles representam apenas 6% de todos os participantes. Isso significa que, no total, 94% dos educadores no Brasil já foram vítimas ou testemunhas de perseguição, censura, intimidação ou agressão verbal e física nos ambientes escolares.
Relatório ONVE
Segundo Renata, a convivência duradoura no ambiente escolar faz com que os conflitos e violências sejam específicos deste espaço, sobretudo porque “nenhum brasileiro passa tanto tempo em contato com uma política pública como nos anos obrigatórios na escola”, que ultrapassam uma década. “Tudo o que implica na convivência escolar, altera também os processos pedagógicos nesse”, explica a pesquisadora. Em vista disso, foi necessária uma metodologia própria para entender de que maneira a censura atua contra os educadores e a democracia do país.
Diretor da FEUFF e coordenador do estudo, o professor Fernando Penna demonstra que todo o clima educacional, bem como a liberdade de ensinar e de aprender, sofrem prejuízos com os casos de violência e censura. “A escola é um grande espaço de educação democrática e de formação para a cidadania, sendo esse um objetivo constitucional da educação previsto na Constituição Federal”, indica. “Se isso afeta a democracia nas escolas, também afeta a nossa democracia como um todo”.
Para além de expor os números e consequências das violências contra quem ensina, a pesquisa também analisou onde, quando e como elas ocorreram. A partir da coleta, o ONVE apresenta recomendações e políticas públicas capazes de contornar a situação no país. Os dados da pesquisa servem para nortear e compreender como a igualdade e liberdade podem resistir em um ambiente permeado por censura, discursos de ódio e metodologias de ensino fragilizadas.
Pesquisa abrange todo o país
O levantamento teve início na divisão do mapa. Foi no Sul do Brasil onde mais educadores passaram por violências: apenas 4% nunca ouviu falar de episódios assim, enquanto 20% já viu acontecer com alguém e 11% já ficou sabendo. No total, 95% dos educadores da região já estiveram envolvidos em algum nível em situações de violência. Segundo a pesquisadora, “é bastante enfático como os vereadores e deputados do sul usam a tribuna do parlamento local para falar de professores” e do conteúdo trabalhado em salas de aula.
Na outra ponta, a região Norte é a com menos incidência, embora o número esteja longe de ser moderado: 52% dos entrevistados afirmaram já ter sofrido algum tipo de violência, mas 10% nunca sequer ouviu falar de situações assim. Todavia, os números ainda indicam que mais da metade dos professores de todo o país já enfrentaram na pele circunstâncias semelhantes.
A pesquisa foi realizada ao longo do segundo semestre de 2024, porém as situações de violência foram mapeadas desde 2010. Antes desse ano, os conflitos relacionados a educadores tratavam questões trabalhistas, como faltas injustificadas ou carga horária. Depois, principalmente a partir de 2014, as divergências “recebem uma nova configuração, voltada para o conteúdo do ensino”, indica Renata.
“A problematização dos saberes dos docentes se inicia fora do espaço escolar e é levado para dentro das salas. Assim, temas como ditadura, negacionismo, holocausto, escravização no Brasil e outros são discutidos no debate público e viram objetos de questionamento constante por parte da direção e coordenação das escolas, de pais de alunos e até políticos”, enfatiza. A linha do tempo traçada pelo levantamento revela, além disso, um padrão: os episódios de violências contra educadores atingem o ápice em anos eleitorais. Em 2018 e 2022, os picos de agressões e perseguições chegaram a aproximadamente 15% de ocorrência em quase todas as regiões do Brasil.
Relatório ONVE
Há, portanto, uma correlação entre momentos de tensão política no país e a repressão ao trabalho docente. Esse fato não apenas demonstra inseguranças em relação à liberdade de expressão de educadores, como também atinge toda a classe profissional em geral. O fenômeno da reorganização da direita e extrema direita não é exclusivamente brasileiro, indica a pesquisadora. “A ideia do combate à ideologia de gênero é visto de diferentes formas nos Estados Unidos, Colômbia, Peru, Venezuela, Chile, Uruguai, França, Bélgica, Portugal, Espanha e Inglaterra. Também vemos em grande parte do mundo um incômodo com professores doutrinadores ou termos semelhantes que eles usam”, exemplifica.
O momento histórico em que vivemos apresenta uma perda de sentido nos regimes democráticos e de confiança na democracia, de acordo com Renata, e, no chão das escolas, isso se reflete em desconfiança, também, frente aos educadores. “Há 15 anos, os professores eram vistos como referência em suas comunidades, mas agora eles são objetos de desconfiança”, explica. A pesquisadora traça um paralelo entre os educadores e os cientistas na época da pandemia da Covid-19 no Brasil: “neste momento, os profissionais foram pouco confiados e a dificuldade em estabelecer políticas de combate e de contenção do vírus pautadas no saber científico foi intensa”.
“O regime democrático é caracterizado por ser um sistema em que as decisões de política pública são baseadas em saberes de confiança e científicos. Se os cientistas e as pessoas que são referência do conhecimento estão perdendo confiança, isso significa perder o sentido da democracia”, afirma. “O principal espaço em que as crianças e jovens têm contato com o saber científico é nas escolas, com os professores. O educador é fundamental para inserir as novas gerações nesse mundo. Então, se somos tolhidos nisso, também eliminamos as possibilidades de apresentar o conhecimento.”
Método expõe diferentes tipo de violência
De acordo com os dados, 58% dos educadores que indicaram contato direto com situações de censura já passaram por tentativas de intimidação, seguidos de 41% que já foram questionados sobre a legitimidade do tema de ensino e 36% e 35% deles já foram convocados a prestar contas ou proibidos de dar continuidade a conteúdos e métodos de trabalho, respectivamente. Em situações mais extremas, 6% deles foram demitidos, 2% foram suspensos e 3% já receberam notificações extrajudiciais ou processos criminais.
As violências contra os educadores não se pautam apenas em agressões ou ofensas, mas, sim, ocasiões como intimidação, processos administrativos, ameaças e até mesmo demissões e suspensões. “A pesquisa busca nomear e criar parâmetros de uma violência que não seria visível sem uma tipologia de casos de censura”, explica Renata. “Com os números, conseguimos falar sobre essas questões de maneira mais enfática e clara”.
Relatório ONVE
A pesquisadora traz como exemplo o caso de um professor vítima de injúria racial protagonizada pelos próprios alunos. Após ouvir ofensas racistas, ele idealizou um projeto pedagógico de combate ao preconceito racial nas escolas e, de início, havia sido aprovado, mas a diretora e a secretaria de educação impossibilitaram que ele seguisse com a iniciativa, que de repente sumiu do sistema. “A diretora não cometeu o mesmo tipo de violência que os alunos ao usar um termo racista, mas ela perpetua o ciclo da violência, já que ela não o interrompe e não deixa que o professor enfrente a questão”, indica. O docente também buscou apoio contra os alunos na esfera policial, por se tratar de um crime, mas Renata explica que “tudo que acontece na escola precisa virar objeto do processo pedagógico”.
“A escola tem um papel fundamental no processo histórico de longo prazo de combater todas as violências no Brasil. E é papel do professor pensar pedagogicamente como lidar com isso. Se ele monta um projeto que não vai para frente, isso é, explicitamente, um episódio de censura. E, aqui, talvez tenha sido uma das coisas menos graves que ele sofreu”, conta. É a partir desse momento, então, que o professor adoece, mas não recebe a licença adequada para a situação. A partir desse momento, são contabilizadas várias faltas nas aulas que culminaram na expulsão da rede de ensino. Neste cenário, a censura não é o ponto mais grave, porém é mais uma camada de violência contra os educadores.
A pesquisadora ressalta que não há uma hierarquização das formas de agressão contra os educadores, porém os relatórios sobre isso também podem tratar casos da chamada violência dura, que indicam situções extremas, como assassinato em escolas. Casos fatais assim não são frequentes, no entanto, todas as formas de violência afetam os educadores, os alunos e o ambiente escolar como um todo.
O Observatório delimitou assuntos específicos que motivaram a censura à atuação de docentes e outros profissionais, bem como as proibições e recomendações para evitar determinados assuntos considerados sensíveis e “polêmicos”. De acordo com os dados, 73% das situações envolviam questões políticas, 53% diziam respeito ao gênero e sexualidade e 48% à religião.
Fonte: Relatório ONVE
“A qualidade da educação que o aluno recebe é diretamente proporcional à qualidade do trabalho que nós, como professores, conseguimos desenvolver. Se eu não tenho condições ou tenho medo de fazer o que eu considero um bom trabalho, esse aluno também não tem acesso a uma educação de excelência”, pontua Renata.
Para Fernando, é prejudicial e afeta gravemente a democracia quando os educadores são desencorajados a tratar diferentes assuntos em aula por medo de represálias e por saberem das violências vigentes no ambiente escolar. “Quando um professor deixa de trabalhar uma temática como gênero e orientação sexual, não só ele é prejudicado, como o estudante”, aponta.
O pesquisador traz dados como os publicados pela Agência Brasil em 2023: a maioria das violências sexuais cometidas entre 2015 e 2019 foram contra meninas de 10 a 14 anos, sendo mais de 60% dos autores do crime pessoas conhecidas das vítimas. “Muitas vezes, é depois do debate no contexto escolar que a criança é capacitada a identificar e denunciar essa violência que ela sofre no espaço privado”, explica. “Mas, se os professores forem impedidos ou tiverem medo de discutir temas como esse, o estudante também é diretamente prejudicado”.
Reflexos da violência
O ONVE revela que os episódios violentos contra os educadores criam uma cadeia de eventos que atinge toda a comunidade ao redor, principalmente indivíduos da mesma área. Dados da pesquisa apontam que 71% dos entrevistados que tiveram experiência direta com a censura afirmam já ter sofrido algum tipo de violência e tiveram a vida profissional moderada, bastante ou extremamente afetada pela situação em questão. Já 62% indicam que vivenciaram, por outro lado, os mesmos graus de impactos sobre a vida fora das salas de aula. Além disso, 45% deles se sentem vigiados e precisaram repensar as falas durante a atividade docente.
Fonte: Relatório ONVE
Fonte: Relatório ONVE
Para os profissionais que nunca vivenciaram, mas já ouviram falar sobre situações assim, o espanto ainda é notável: 35% deles começaram a pensar mais sobre a atividade profissional e 20% também se sentem inseguros e vigiados. Os dados indicam que a represália contra os educadores geram uma espécie de espiral do medo, em que outros profissionais também se sentem hesitantes ao lecionar.
“O impacto dessas violências é grande até mesmo nas pessoas que não foram diretamente censuradas. O ofício dos educadores é muito racionalizado e intelectualizado. Estamos sempre reelaborando o conteúdo das aulas para que se adequem aos alunos, mas, se eu vejo um colega sendo impedido de falar sobre determinado tema, qual é a garantia que eu não seja a próxima a ser tolhida?”, questiona Renata. “É natural entender quando uma ameaça é coletiva”, acrescenta. “É por isso que toda a cadeia de educadores é afetada, tanto na vida profissional quanto pessoal”.
O ONVE compreende que as vulnerabilidades enfrentadas no ambiente escolar, como a censura, e até mesmo a precarização do ensino, podem refletir no chamado “apagão de professores”. Este fenômeno diz respeito à desistência de gerações futuras se inserirem na área ou ao abandono da prática docente por parte dos profissionais que já atuam no magistério. Este fator, no caso, ocorre hoje: 39% dos entrevistados que sofreram censura diretamente já questionaram a permanência como educador após sofrer violência, 25% já desistiu de um projeto e, em casos mais extremos, 2% já trocaram de carreira.
Fonte: Relatório ONVE
Ainda nesta temática, Renata adiciona outros fatores que contribuem para o abandono da prática docente. Segundo ela, os censos escolares demonstram que, em quase todos os estados do país, a maioria dos professores são temporários. “O vínculo por concurso era um dos fatores que mantinha a carreira de docência atraente, mas isso também vem diminuindo”. O trabalho de educador deixou de ser aquele em que as pessoas permanecem por muito tempo ou dedicam-se exclusivamente. Ainda na visão de Renata, o crescimento do trabalho precarizado em relação a direitos e deveres, além das diferentes formas de constituição e orçamento familiar nos dias atuais também impactam o setor.
“Essa é uma carreira que demanda formação em nível superior, mas que paga menos do que as outras com os mesmos requisitos. É uma atividade que expulsa os professores, senão por ser pouco atraente, por adoecimento. A quantidade de afastamentos devido a questões de saúde é notável”, aponta a pesquisadora.
Caminhos possíveis
Frente aos dados alarmantes, o Observatório entende que é preciso uma saída multidisciplinar. Em colaboração com o Governo Federal, os pesquisadores elaboraram um projeto de políticas públicas que tem o objetivo de reduzir as consequências negativas dos efeitos das violências contra educadores e, no futuro, diminuir o máximo possível a prática. “O primeiro passo é coletivizar o problema”, explica Renata. “A violência isola a vítima, ela se sente sozinha, um alvo de todos, é uma situação angustiante”. O cuidado vai além de direcionar por caminhos legais, mas também ouvir e oferecer rede de apoio àqueles que precisam.
Os protocolos de atendimento desenvolvidos pela ONVE contam com acolhimento jurídico e psicológico para os docentes que passaram pela situação de violência. “Nós oferecemos um curso em parceria com o MEC ao longo do ano que oferecia acolhimento por meio de conversas com um educador, um psicólogo e um advogado. Montamos uma equipe com as três áreas para discutir o caso e apoiar o professor”, explica.
Por ser um projeto de extensão da UFF, o vínculo dos participantes não é profissional e sim como forma de apoio e orientação para fortalecer a vítima. “A gente se cuida enquanto equipe, enquanto coletivo de educadores”, ressalta. Outra forma de grupalidade, ou seja, de coletivizar o problema: um trabalho conjunto das pessoas, além do apoio na escola, na comunidade, junto aos alunos e aos colegas, ao sindicato, e junto ao SUS, afirma a pesquisadora.
O grupo de pesquisa firmou um Acordo de Cooperação Técnica com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), no qual produziram um documento para embasar a reformulação de elementos do Disque 100. Esse é um canal gratuito do Ministério que recebe denúncias de violações dos direitos humanos, principalmente de grupos em vulnerabilidade social. A proposta do ONVE é que os professores possam denunciar, por meio do serviço, qualquer violação aos direitos decorrentes do exercício do ofício docente.
No momento, o Observatório já encaminhou o documento técnico para a adaptação do canal para receber as denúncias específicas de violências contra educadores, visando a proteção dos direitos desses profissionais no país, através de um protocolo específico de encaminhamento das denúncias.
“Para não haver censura, devem haver políticas que nomeiam a importância da liberdade de aprender e ensinar. Essa não é uma liberdade apenas do educador, mas um direito dos alunos. A censura prejudica o direito à educação de todos os envolvidos no processo educativo”, conclui Renata.
Fernando de Araujo Penna é diretor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (FEUFF). É doutor e mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE/UFRJ) graduado em História também pela UFRJ. É líder do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos em Educação Democrática (NEED) e coordenador do Observatório Nacional da Violência contra Educadoras/es (ONVE).
Renata Aquino é doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo (USP). É mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). É graduada em História, pesquisadora associada ao NEED (UFF) e ao ONVE.
Por Letícia Souza.
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