AmarElo: Emicida concilia good vibes com denúncia ao racismo em show vibrante em Niterói


Texto: Rudá Lemos

O cenário é de igreja gótica, com janelas verticais que projetam imagens dos Brasis e o sincretismo com os orixás das religiões afro-brasileiras. O culto é meio diferente e o padre também é um pouco inusitado. Rapper paulista revelado em 2009 com a mixtape “Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe”, já não era a primeira vez que Emicida abarcava em Niterói: em 2016 fez um vibrante show no Teatro Popular Oscar Niemeyer e em 2018 deu as caras em outro show gratuito na Praia de Piratininga. Nos dois casos ainda não tinha lançado “AmarElo” (2019), seu mais recente e talvez melhor álbum apresentado quase na íntegra nos dias 7 e 8 de março de 2020 na Sala Nelson Pereira dos Santos.


“Tem gente que veio nos dois dias? Pô, aí vocês me quebram, eu não vou poder repetir as mesmas piadas de ontem”, brincou o cantor na apresentação do dia 8. É que entre as 22 músicas do seu repertório de hip hop com músicas de marcante encadeamento melódico, Emicida interagia com entusiasmo com a plateia contando casos engraçados na sua ascendente carreira. O senso de humor só era suspendido quando Emicida aproveitava a atenção da casa lotada com seus 490 lugares para denunciar o racismo, a sua maior bandeira.


Sua capacidade de cronista urbano é destacada logo na abertura, com a apresentação da bela “A ordem natural das coisas”, para na sequência enaltecer a parceria com o mestre Wilson das Neves (1936 – 2017) na composição de “Quem tem um amigo (tem tudo)”, um dos destaques do repertório novo, em que os beats do DJ Nyack são somados com a batida na caixinha de fósforos de Emicida. Provando que os rappers também amam, emenda “Pequenas alegrias da vida adulta” e “Cananéia, Iguape e Ilha Comprida” – nesta última faz uma saudação para Deise Cipriano (1979 – 2019) do Fat Family, assumindo o uso de sample da sua voz angelical.


Na sequência desse bloco do disco novo, mas mantendo a carga romântica, Emicida traz “Baiana”, rap-soul-afoxé sedutor que na gravação original traz a voz de Caetano Veloso. Revelando que atingiu o sucesso sem prever que aconteceria e que ainda não está acostumado, Emicida brinca que nunca imaginou que ir ao mercado seria complicado e nem que iria conhecer Caetano e fazê-lo cantar em gíria “pode pá” em um disco.


Ao que seguiu outra música que também está no álbum “Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa” (2015): “Madagascar”, mantendo o caráter pop e romântico do seu flow. Terminada a canção alguém da plateia grita: “Emicida, você é o King Size de Niterói” ao que ele rebate imitando o rapaz doidão do vídeo que viralizou para gargalhada de todos. Nessa sintonia afetiva com o público, Emicida diz que o hip hop não precisa ser sempre “do mal” e sério sempre e segue com outro petardo da safra recente: “Paisagem”, a música que mais se aproxima do estilo onírico do subgênero “cloud rap” de nomes como Lil B e ECCO2K, em versão ao vivo que pareceu mais pesada nos samples de guitarra. 


Música que projetou “O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui”, consagrado disco de 2015, “Hoje cedo” foi cantado em plenos pulmões pelos fãs presentes. Mas foi quando Emicida resgatou o hino de Belchior, “Sujeito de Sorte”, na música que dá o nome ao disco novo que a plateia desistiu de assistir sentado dentro do formato de teatro para levantar e em uníssono dizer que morremos no ano passado, mas que nesse ano não morreremos mais.


Ponto de inflexão para uma frequência mais politizada do show, modificando o clima “good vibes” de até então, o rapper faz uma sequência de pedradas que enaltecem a raça negra: “Pantera Negra” e “Zica, vai lá”. Esta, única lembrada do seu primeiro álbum “Doozicabraba e a revolução silenciosa” (2011), cita Jorge Aragão “respeite quem pode chegar aonde a gente chegou”, ao que no final da música repete referência ao sambista ao citar “elevador é quase um templo” (da música “Identidade”) para falar do racismo que impede negros acessarem espaços públicos. “Que serzinho curioso é o racista, não é?”, debocha antes de gritar “Neguinho o caralho” de “BANG!”, música que deu continuidade na linha do protesto que se seguiu ainda com “Eminência parda” e “Ismália”, exemplos mais politizados da safra nova.


Ao que para saudar as rappers mulheres como Drik Barbosa, justamente no Dia Internacional da Mulher – “Escutem mais elas e outros rappers que não estejam na grande indústria” – Emicida convida Brisa Flow para enaltecerem juntos a cultura indígena na excelente “Fique viva”, pertencente do disco da Brisa, “Selvagem como o vento” (2018). Após outro carro-chefe do álbum “O glorioso…”, a inspiradora “Levanta e anda”, era inevitável que o acúmulo de tanta carga política e de denúncia surgiria um “Fora Bolsonaro” da plateia, ao que Emicida responde de prontidão “aqui dentro é outra história, eu estou tentando devolver a beleza que esses capirotos roubaram da gente” para ovação completa da plateia.


Na sequência o cenário remetendo à igreja é justificado com a participação do Pastor Henrique Vieira repetindo a declamação sobre o ato revolucionário do Amor gravada em disco na música “Principia”. Após o culto e abraço efusivo entre os dois, em que era possível ver lágrimas nos olhos do rapper, Emicida se despede de Niterói com muitos agradecimentos para a plateia e toda equipe da Sala Nelson Pereira dos Santos.


Em sua volta para o Bis retorna com o bom humor de brincar com a plateia: “vocês não pediram mas eu voltei”. É a deixa para as pessoas pedirem músicas que ainda não foram tocadas. Emicida estava tão atento com a participação do público que ouviu de longe uma criança pedir “Boa esperança” (2015) e brincou que eram os pais da criança que mandaram ela fazer o pedido. Acabou não tocando essa, mas fez um Encore robusto, com direito a a quatro músicas que fazem a ponte do hip hop com o funk carioca: a potente “Mandume”, as ostentações de “Gueto” e “Libre”;  e “A chapa é quente”, única lembrada do projeto Lingua Franca, com Rael e os portugueses Capicua e Valente. Para terminar em “good vibes”, “Passarinhos” foi cantada junto ao público, música essa que na versão original tem participação de Vanessa da Mata. Coincidência que marca a boa onda de política cultural em Niterói, a mesma Vanessa cantava para milhares na Praia de São Francisco, em só alguns kilometros deste culto rap do padre Emicida.


Set-list:
1. A ordem natural das coisas (Damien Seth & Emicida, 2019)
2. Quem tem um amigo (tem tudo) (Wilson das Neves & Emicida, 2019)
3. Pequenas alegrias da vida adulta (Nave & Emicida, 2019)  
4. Cananéia, Iguape e Ilha Comprida (Nave & Emicida, 2019)
5. Baiana (Emicida & DJ Dhu, 2015)
6. Madagascar (Emicida & Xuxa Levy, 2015)
7. Paisagem (Nave & Emicida, 2019)
8. Hoje cedo (Emicida & Felipe Vassão, 2013)
9. AmarElo (DJ Duh, Felipe Vassão e Emicida, 2019 – citação Sujeito de sorte [Belchior, 1976])
10. Pantera Negra (Emicida & Felipe Vassão, 2018)
11. Zica, vai lá (Emicida, Rael, Beatnick & K-Salaam, 2011)
12. BANG!(Emicida, Ogi, Rael & Felipe Vassão, 2013)
13. Eminência parda (Nave, Emicida, Jé Santiago & Papillon, 2019)
14. Ismália (Nave, Renan Samam & Emicida, 2019)
15. Fique viva (Brisa Flow, 2018) – com Brisa Flow
16. Levanta e anda (Emicida, Rael, Beatnick & K-Salaam, 2013)
17. Principia (Nave & Emicida, 2019) – com Pastor Henrique Vieira

BIS
18. Mandume (Emicida, Rafael Tudesco, Drik Barbosa, Rico Dalasam, Amiri, Raphão Alaafin & Muz, 2015)
19. Gueto (Emicida & Léo Justi, 2013) – com citação de Rap da felicidade (Juninho Rasta & Kátia, 1995)
20. A chapa é quente (Emicida, Fred Ferreira, Kassin & Nave, 2017)
21. Libre (Emicida, Ibeyi & Nave, 2019)
22. Passarinhos (Emicida & Xuxa Levy, 2015)

Fotos: Ana Beatriz Kerbel

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