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Ambulatório do Hospital Universitário Antônio Pedro realiza tratamento de alopecia para a população negra


A escassez na prestação de serviços para a população negra e a ausência de pesquisas voltadas para a promoção de uma melhor qualidade de vida deste grupo é uma realidade enfrentada no Brasil há séculos e está fundamentada no racismo estrutural. Entretanto, dados do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE) apontam que 55% da população brasileira é composta por pretos e pardos. Os números revelam um país marcado pela desigualdade, uma vez que negros, por mais que figurem como maioria populacional, esbarram na dificuldade de usufruir de diretos básicos, como saúde. Uma pesquisa desenvolvida pelo Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra) revela que há uma discrepância no acesso à saúde entre negros e brancos: 29% da população negra no Brasil nunca foi ao dentista ou não consulta com um médico há mais de três anos.

Apesar do cenário desanimador, o Brasil conta com iniciativas que acolhem, tratam e se dedicam a desenvolver pesquisas voltadas para a população negra, como é o caso do Ambulatório de Alopecias, do Hospital Universitário Antônio Pedro da Universidade Federal Fluminense (Huap-UFF). Criada há 10 anos, a unidade recebe pacientes com determinados tipos da doença, caracterizada pela perda de pelos e cabelos, com destaque para o tratamento e os estudos em peles negras. O perfil prevalente dos pacientes atendidos no local é nítido: 80% são pessoas negras, majoritariamente mulheres. 

Segundo Maria Fernanda Gavazzoni, professora de Dermatologia, do programa de pós- graduação em Patologia da UFF e coordenadora do Ambulatório de Alopecias, a unidade recebe, principalmente, pacientes diagnosticados com alopecias cicatriciais, ou seja, tipo em que a perda de pelos e cabelos é definitiva e irreversível. “Nós atendemos  na unidade  os casos encaminhados pelo Ambulatório Geral de Dermatologia do hospital. Chegam para nós pacientes específicos, com tipos de alopecia  mais difíceis de tratar, e majoritariamente mulheres negras”, explica a professora ao se referir ao funcionamento do serviço e tipos da doença. “Além das cicatriciais, lidamos também com um tipo classificado dentro das não cicatriciais (reversíveis), a areata, de difícil tratamento, já que se refere a um tipo imunomediada, o próprio corpo cria defesa contra ele mesmo em um processo inflamatório”, acrescenta.

Afinal, o que é alopecia?

A literatura médica tem catalogado diversas apresentações de alopecias diferentes que podem se manifestar em homens e mulheres. A doença é caracterizada pela perda de cabelos e pelos. Entre elas, a calvície, um tipo muito comum e acomete 42 milhões de brasileiros, segundo estimativa da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD). As alopecias podem ser classificadas em dois tipos: as não cicatriciais, nas quais ainda há chance de o cabelo voltar a crescer, e as cicatriciais, em que a região afetada pela doença perde os fios de forma definitiva. “No segundo tipo, os tratamentos são realizados para impedir o avanço da doença para outras partes do couro cabeludo e diminuir o processo inflamatório”, afirma a coordenadora.

Não existe uma causa específica para o surgimento da alopecia. Ela pode estar relacionada a fatores genéticos, alterações do sistema imunológico, ao uso de quimioterapia, no tratamento do câncer, ou, até mesmo, a outras doenças como lúpus, por exemplo, e situações de estresse. “No nosso ambulatório, a alopecia fibrosante frontal, um tipo classificado como cicatricial, é frequente entre as nossas pacientes, e caracteriza-se pela perda capilar na linha frontal do couro cabeludo”, exemplifica Nadia El Kadi, doutoranda do programa de pós-graduação em Patologia, que desenvolve um estudo sobre as alopecias nas mulheres negras. 

Freepik. O tratamento em pacientes diagnosticados com alopecia areata, tipo de difícil tratamento por envolver um processo inflamatório, é um dos focos do ambulatório do Huap

Atendimento 

O Ambulatório de Alopecias atende os pacientes toda quarta-feira, pela manhã. “Recebemos, em média, 25 pessoas por semana. O ambulatório foi estruturado para receber de 8 a 15 pacientes semanalmente, mas temos uma demanda alta e, para supri-la e não deixar ninguém sem atendimento, eventualmente, expandimos o horário das consultas”, conta a professora, que atua junto a dois residentes, além de pós-graduandos e alunos de graduação e iniciação científica, que acompanham os atendimentos do ambulatório e participam das pesquisas.

A entrada na unidade é feita pelo Sistema Nacional de Regulação (Sisreg) e Sistema Estadual de Regulação (SER), ambos ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS), ou seja, o paciente precisa ser atendido em uma unidade básica de saúde e receber encaminhamento para o Ambulatório Geral de Dermatologia do Huap e, na sequência,  direcionado para o de alopecia. O encaminhamento para o ambulatório pode ser feito via outros serviços oferecidos pelo Huap. A unidade recebe pacientes de diversas cidades além de Niterói, como Maricá, Araruama, São Gonçalo, Itaboraí, Cabo Frio, entre outras localidades do Estado do Rio de Janeiro.

A prevalência nas consultas são as mulheres negras, em torno dos 55 anos, que buscam melhoria na qualidade de vida e nutrem uma esperança de ter de volta seus cabelos. “A alopecia pode não ser uma doença letal, mas acarreta muitos prejuízos à saúde mental, como depressão, ansiedade e outros distúrbios psíquicos, porque é uma condição que mexe com a autoestima das pacientes. O cabelo é o cartão postal dessas pessoas e a perda causa muita dor”, explica Gavazzoni ao detalhar como o acolhimento faz parte das consultas. “Procuramos abraçar e compartilhar a dor dessas mulheres, que muitas vezes chegam chorando no consultório em busca de uma solução e acolhimento”, acrescenta. 

A capixaba Maria Célia da Silva, de 66 anos, é uma das muitas mulheres que utilizam os serviços do ambulatório. Há cerca de cinco anos, quando deu entrada na unidade, foi diagnosticada com duas doenças. “Cheguei na consulta reclamando da queda de cabelo e feridas na pele. Fiz os exames e o resultado acusou alopecia. Junto a essa descoberta, veio também o lúpus”, relata a paciente. Moradora de Niterói desde os 3 anos, Maria Célia já realizou diversos procedimentos no hospital universitário e afirma que sempre foi bem atendida. “A equipe que faz o tratamento da alopecia é incrível e faz toda a diferença na minha vida. Os médicos são muito atenciosos, acolhedores e cuidadosos. Além do trabalho excelente feito no ambulatório, as três cirurgias que fiz no hospital foram um sucesso. Só tenho a agradecer pela atenção que recebi ao longo dos anos”, relata a profissional de serviços domésticos, que se trata no Huap desde 2015.

Acervo pessoal. Na foto, a paciente Maria Célia, que trata lúpus e alopecia no Huap, comemora seu aniversário de 66 anos

Para a doutoranda El Kadi, as doenças dermatológicas, por serem visíveis, desencadeiam preconceitos e dificuldades na convivência social. “Assim como outras doenças da pele, as alopecias ainda fazem muitas pessoas sofrerem vom a discriminação. Em muitos casos, as pessoas acabam se afastando do convívio social, e isso também pesa na vida profissional. Muitas pacientes, por exemplo, encontram dificuldades até para conseguir um emprego por causa da alopecia”, explica a doutoranda, que se debruça sobre o estudo de alopecias em mulheres negras desde 2021. 

Destrinchando a pesquisa 

A escassez de literatura médica sobre o couro cabeludo negro, somada ao fato de a maioria da população atendida na unidade ser preta e parda, motivou o ambulatório se dedicar ao estudo das alopecias nessa população. Orientada pela professora Maria Fernanda Gavazzoni, Nadia El Kadi desenvolve uma tese de doutorado específica sobre a doença em mulheres negras. A pós-graduanda percebeu que a carência de pesquisas voltadas para as especificidades da doença nessa população dificulta o diagnóstico precoce e o acesso a um tratamento eficaz. “O estudo tem como finalidade contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população negra e ampliar a literatura existente e aperfeiçoando os métodos já utilizados”, explica.

A pesquisa procura reunir conhecimentos que possam apoiar os profissionais de saúde na interpretação integrada dos dados e favorecer diagnósticos mais precisos. Segundo El Kadi, já existem exames complementares, como a tricoscopia, que ajudam na descoberta das alopecias. “Nossa proposta é colaborar no desenvolvimento de algoritmos que tornem a identificação da doença em pessoas negras mais precisa. A ideia é criar ferramentas que auxiliem a integração das informações obtidas nos exames clínicos, como a tricoscopia e histopatologia, para facilitar o diagnóstico do tipo de alopecia e a indicação do tratamento mais adequado”, explica.

Freepik. A alopecia pode se manifestar, inicialmente, na queda não só de cabelo, mas de pêlos, como das sobrancelhas

A coordenadora explica que o couro cabeludo negro é rico em cores, diferente da composição de pessoas brancas, que possui uma única cor. “No caso da população negra, composta por pretos e pardos, é possível encontrar diversos tons. A literatura produzida, em sua maioria, se dedicou a estudar a estrutura do couro cabeludo de pessoas brancas. Visto que 80% dos nossos pacientes são pessoas negras, vimos a necessidade de criar estudos para entender em profundidade as especificidades da alopecia nessa população”. 

De acordo com El Kadi, a pesquisa foi dividida em dois grupos: “Um formado por pacientes negras sem queixas e sem sinais de alopecia, e outro por pacientes com alopecias. O objetivo é compreender melhor os critérios de normalidade dessa população, identificar os tipos mais comuns de alopecias, suas principais características e buscar formas de favorecer um diagnóstico precoce”, explica a doutoranda. “Nosso objetivo é contribuir para reduzir a marginalização de pessoas pretas e pardas, produzindo conhecimento sobre suas características específicas e compartilhando-o com o maior número possível de profissionais, para que possam oferecer um cuidado mais adequado à população negra”, completa.

“O ambulatório cumpre uma função importante: formar uma nova geração capaz de identificar, traçar um diagnóstico precoce e prescrever um tratamento adequado para a população negra. Infelizmente, temos profissionais da Dermatologia que não têm conhecimento sobre alopecias. Queremos transformar essa realidade”, frisa Gavazzoni. 

Desafios e soluções no caminho

Apesar dos esforços para atender a população negra e se debruçar sobre pesquisas relacionadas ao grupo para oferecer uma maior qualidade de vida, o ambulatório esbarra em um problema social: o poder aquisitivo dos pacientes. Dados do IBGE apontam que trabalhadores negros ganham 40% menos do que brancos por hora trabalhada. Essa realidade impacta diretamente no acesso a medicações prescritas para o tratamento. “O SUS disponibiliza poucas medicações para tratar alopecias, salvo nos casos de lúpus e outros muito específicos. Na maioria das vezes, os pacientes precisam arcar com os custos integrais dos remédios. Tal situação interfere diretamente na continuidade dos tratamentos”, explica Gavazzoni. 

Para driblar as dificuldades, os usuários do serviço utilizam os remédios que conseguem adquirir com esforço próprio e as amostras grátis disponíveis no consultório. “Criamos um ambiente de apoio, quase como uma família, em que todos se ajudam e se motivam para conseguir realizar os tratamentos, recuperar parte da autoestima e se reintegrar à sociedade”, finaliza a coordenadora, que está há uma década à frente do ambulatório. 

Outro recurso encontrado pela equipe da unidade  para encorajar as mulheres a seguir com a terapia medicamentosa e a reconquistar sua autoestima foi a criação do projeto de extensão Amor em Cada Fio, que realiza a doação de perucas para mulheres diagnosticadas com alopecia em estágios avançados. A iniciativa conta a doação de cabelos para a confecção de perucas e parcerias com instituições e empresas que oferecem o serviço gratuitamente para a universidade.

 

Maria Fernanda Gavazzonié professora adjunta de Dermatologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenadora do curso de pós-graduação em Dermatologia da UFF e vice-coordenadora da Residência Médica em Dermatologia do Hospital Universitário Antônio Pedro da UFF (Huap-UFF). Professora permanente do Departamento de pós-graduação em Patologia UFF. Professora responsável pelo Ambulatório de Alopecias do Huap. É membro da Diretoria do American Hair Research Society como representante da América Latina desde 2018.

Nadia El Kadi possui graduação em Medicina pela Fundação Técnico Educacional Souza Marques – Escola de Medicina (2004), pós graduação em Clínica Médica pela Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro – 9ª Enfermaria (2006). Além de pós graduação em Medicina do Trabalho pela UNIG (2006), MBA em Gestão de Saúde pela Fundação Getúlio Vargas (2010). Possui especialização em Ergonomia pela COPPE/UFRJ (2012), pós-graduação em Dermatologia pela Faculdade Ipemed de Ciências Médicas (2015), mestrado em Ciências Médicas pela Faculdade de Ciências Médicas da UERJ. Atualmente, é doutoranda do programa de pós-graduação em Patologia pela UFF.

 

Por Wladimir Lênin.

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