Consciência Negra: pesquisador da UFF propõe filosofia do quilombo para repensar educação e memória
O corpo como guardião da memória, o quilombo como devir e a educação como gesto de reparação: essas são as chaves conceituais que orientam as pesquisas do professor Diego de Matos Gondim, do Departamento de Ciências Exatas, Biológicas e da Terra da Universidade Federal Fluminense (UFF). Com projetos financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela British Academy, Gondim articula cinema, filosofia e antropologia para propor uma educação contra-colonial e ancestral.
Desde 2015, o pesquisador atua junto a comunidades quilombolas no interior de São Paulo e no estado do Rio de Janeiro para investigar como as práticas cotidianas como plantar, costurar, rezar, dançar ou pescar podem ser compreendidas como formas de pensamento e escrita. “Esses gestos são modos de narrar a história e de afirmar a vida. O corpo é o lugar onde a história negra se inscreve e se reatualiza, um arquivo vivo, que fala e se movimenta”, diz o docente.
O conceito central de seu trabalho, o corpo-arquivo, inspira-se em autoras como Beatriz Nascimento e Leda Maria Martins, e propõe que o corpo seja entendido como um documento que guarda e reencena as memórias ancestrais.
Corpo-arquivo: a história viva na pele e no gesto
A ideia, explica Gondim, nasceu de sua experiência etnográfica em comunidades quilombolas e do diálogo com o pensamento de Beatriz Nascimento. “A historiadora nos provoca a pensar que, se existe uma história do negro no Brasil, ela precisa partir do corpo vivo, dessa presença na sociedade”, afirma. “Não se trata de negar os arquivos formais, mas de reconhecer que há outra materialidade da história: o próprio corpo.”
Assim, o pesquisador conceitua corpo-arquivo como “uma enunciação viva da história do negro no Brasil, que acontece nas práticas cotidianas das comunidades”. Isso porque, segundo Gondim, “a história da negritude no Brasil não está apenas nos registros documentais. Ela se inscreve na carne, na presença e nos gestos. Esse corpo produz história por si só, não apenas de dor e negatividade, mas também de vida e afirmação”, explica o professor.
Gondim pensa o corpo como superfície de inscrição e performance da memória, onde passado e presente se sobrepõem. Ele recorre à imagem do pergaminho para descrever essa ideia: a materialidade corporal como um documento que se desenrola e se reescreve continuamente.
O conceito foi desenvolvido junto ao curta-metragem “Artes(an)Ato” (2022), realizado com mulheres artesãs e costureiras do Quilombo Mandira, em Cananéia (SP), com apoio do Programa de Ação Cultural (PROAC). O filme surge do pedido das próprias moradoras: “Mineirinho, por que você não produz um filme só da mulherada aqui?”, recorda o professor, usando o apelido pelo qual é conhecido na comunidade.
Equipe de gravação do curta no Quilombo Anastácia. Foto: Rogério Borges/Divulgação
Segundo Gondim, “na tradição oral, as narrativas estavam centradas em figuras masculinas, mas havia uma lacuna sobre a mãe escravizada do fundador do quilombo, uma mulher sem registro, apagada dos documentos e da memória coletiva, que chamamos de Mandirana. O corpo-arquivo nasce como uma forma de fabular essa ausência e reinscrever essa mulher na história”.
Ao reconstruírem, no filme, a figura da Mandirana, as mulheres refazem suas próprias histórias. “Quando elas começaram a narrar quem poderia ter sido a matriarca apagada das histórias , acabaram contando sobre si mesmas. Contaram sobre suas mães, avós, sobre o cotidiano da pesca, do artesanato, dos partos, da luta. A ancestralidade se dobra no corpo. A Mandirana são elas mesmas”.
Para o professor , o corpo-arquivo é esse espaço onde a opacidade se torna legível. “É o que dá passagem às expressões da ancestralidade do presente. O antigo, o ancestral, não é um passado distante, é uma presença viva. Há uma dobra do tempo aí: passado, presente e futuro coexistem no corpo”.
Devir-quilomba: o quilombo como movimento e futuro
Da experiência com as mulheres do Mandira, surge também o conceito de devir-quilomba. Para o pesquisador, o quilombo não é apenas um território físico, mas um movimento, um processo de transformação contínua de si e do mundo. O termo nasce do cruzamento entre o “corpo-tela”, de Leda Maria Martins, e o “devir” de Deleuze, e ganha materialidade na própria vida comunitária.
“O devir não é uma coisa dada. Ele acontece quando essas mulheres passam a se ver e se reconhecer. É a metamorfose do desejo, da imagem, das relações”, explica.
O gesto de criar a Associação de Mulheres Artesãs e Costureiras do Mandira foi, para ele, um exemplo concreto desse devir. “Quando elas passaram a se reunir para fazer artesanato, transformaram a divisão interna do trabalho. Essa prática, aparentemente simples, transformou as lideranças no quilombo. Quando uma delas quase se tornou presidente da associação e seu nome desapareceu das atas, as mulheres entenderam que precisavam criar o próprio coletivo. E criaram. Hoje, elas dizem: ‘Aqui, somos nós que mandamos’”.
Mulheres artesãs do Quilombo do Mandira. Foto: Dayse Serena/Divulgação
Gondim relata que, com o tempo, essas transformações sutis se tornaram revoluções silenciosas. “Ao conviver no quilombo, via a cena se impor no meu dia a dia: a mulher estendia o tapete para fazer artesanato, e o homem ia para a cozinha, preparava o almoço, levava o filho à escola. Não era um discurso, era o devir acontecendo no cotidiano”.
Esse movimento, ele diz, é político e poético ao mesmo tempo. “O devir-quilomba é a transformação de si sobre si mesma, que sempre revela um ‘outro’. É quando o corpo deixa de ser apenas o executante e se torna o criador, o objeto e o sujeito da mudança”, narra.
Cinema, podcast e HQs: o arquivo em múltiplas linguagens
As filosofias que atravessam a pesquisa de Gondim se concretizam em dois grandes projetos: Oralituras Quilombolas e Worlding Quilombo, ambos em andamento. O primeiro propõe uma série de podcasts e HQs pedagógicas produzidas com comunidades quilombolas do Rio de Janeiro. “O objetivo é que as pessoas possam ouvir no metrô, lavando a louça, e perceber que essas pessoas existem, trabalham, estudam, criam filhos. É tornar visíveis os modos de vida quilombolas contemporâneos”.
Página da HQ Escrelituras. Foto: Batata Sem Umbigo/Divulgação
As HQs, chamadas de Escrelituras Quilombolas, serão distribuídas em escolas públicas, com desenhos em preto e branco para que os alunos possam colorir. “Uma coisa é uma criança colorir a Turma da Mônica. Outra é colorir uma personagem em que ela consegue reconhecer como sua mãe, sua tia ou sua vizinha. Isso produz pertencimento”, conta Gondim.
O Worlding Quilombo, financiado pela British Academy, amplia o diálogo internacional sobre o quilombo como espaço de liberdade, arte e pensamento. O projeto envolve a produção de curtas bilíngues e de um livro coassinado por intelectuais quilombolas, em parceria com a Queen Mary University of London. “O cinema é uma forma de performar a opacidade. Em muitas comunidades, há segredos que não podem ser ditos, mas podem ser mostrados. O cinema permite isso, ele faz o segredo respirar”, acrescenta o pesquisador Diego Gondim.
Essas produções, são também dispositivos políticos, destaca o professor. “Esses projetos são feitos com e a partir das mãos quilombolas. Eles são os protagonistas, os atores, os intelectuais, os teóricos. O conhecimento se dá em comum”.
As experiências também se articulam à sua pesquisa de pós-doutorado, voltada para uma filosofia política do quilombo e sua tradução para o contexto do Atlântico Negro, que se tornará um livro bilíngue ao final. “Traduzir o quilombo para outro idioma é também uma questão filosófica. O que se perde e o que se ganha nesse processo? Essas são perguntas que atravessam o livro que estou escrevendo”, pontua.
Educação contra-colonial e ancestral
Em suas pesquisas, Gondim propõe uma educação contra-colonial e contra-sanitária, inspirada em intelectuais como Nego Bispo e Ailton Krenak. Essas perspectivas nascem da necessidade em pensar a formação de professores e a filosofia a partir da própria terra brasileira. “Nego Bispo nos ensina que contra-colonizar é ‘suar’ a própria casa. É um exercício que começa no corpo e na terra. Já Krenak nos mostra que a terra não é sujeira, é o modo como nos constituímos como pessoas e comunidades”.
A partir dessas referências, Gondim defende uma educação enraizada nas experiências quilombolas e indígenas, em contraposição à racionalidade colonial. “Não se trata de trazer a comunidade para a universidade e nem o inverso. Trata-se de assumir que o ato de pesquisar e de formar educadores deve nascer junto a essas cosmologias”.
Mulheres em momento de lazer no quilombo do Mandira. Foto: Dayse Serena/Divulgação
Essa perspectiva redefine o papel da universidade e da formação de professores, pois não se trata de incluir comunidades no currículo, mas de assumi-las como parte dele. “Quando a comunidade se vê projetada num filme e reivindica essa imagem, ela já está reescrevendo a história. É preciso levar a sério os intelectuais quilombolas e indígenas, não apenas como citação, mas como pensamento vivo”, diz Gondim. Para o docente, a filosofia não precisa vir “de fora”, ela já existe nas práticas cotidianas das comunidades. “Nesse sentido, o quilombo não é meu objeto de pesquisa, é meu interlocutor”, acrescenta.
Do quilombo ao futuro da educação
Hoje, Diego Gondim conduz o projeto Filosofias das diásporas africanas e ameríndias: propostas para uma educação ancestral, financiado pelo CNPq, que articula dados de diferentes pesquisas realizadas junto a quilombos de diversas regiões do Brasil. A proposta é construir, a partir dessas experiências, uma filosofia da educação do diverso “Apostar no diverso é afirmar cada um como um universo. É pensar o currículo como um ato de lavrar a terra, em que as coisas rendem e o outro não é diferente”.
Esse pensamento, conta o pesquisador, não nasce apenas da teoria, mas de uma prática de vida, de uma educação que enfrenta o racismo, a violência e as marcas da necropolítica ainda presentes no país. “O corpo negro, mesmo quando tudo faz certo, é olhado com suspeita. Mas é nele que habita a resistência, um pergaminho vivo da história e da invenção. Ao reivindicar a imagem o povo negro diz: estamos vivos e somos presenças”.
Ao refletir sobre o futuro do quilombo e da educação brasileira, Gondim propõe um horizonte que une memória, ancestralidade e transformação. O pesquisador resume sua proposta como uma filosofia transatlântica. “O quilombo não é só um lugar, é um modo de existir, a invenção cotidiana de mundos possíveis. É um gesto de adiar o fim do mundo”, finaliza.
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Diego De Matos Gondim é Doutor em Filosofia pela Université Paris VIII (Fr), na Ecole Doctorale Pratiques et Théories du Sens (ED 31), doutor e mestre em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP-Rio Claro), tendo realizado estágio de pesquisa durante o mestrado no Departamento de Filosofia da Universidad Nacional del Sur, Bahía Blanca, Argentina. É professor e pesquisador do Departamento de Ciências Exatas, Biológicas e da Terra na Universidade Federal Fluminense (PEB/UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE/UFRJ). Coordena a Cooperação Internacional entre a UFF e a Queen Mary University of London (QMUL), contemplada com o Prêmio ODA – International Interdisciplinary Research Projects 2024, subsidiado pela British Academy, a cooperação nacional entre a UFF e a UNESP, subsidiada pelo CNPq, FAPERJ e FAPESP. Atualmente é bolsista APQ1 (processo 294283) e Jovem Cientista do Nosso Estado (processo 298329), ambos financiados pela FAPERJ. Nas pesquisas, seus temas de interesse são aqueles que apostam na vida como forma de oposição à captura e ao esgotamento sistêmico do colonialismo e do neoliberalismo, com ênfase nas filosofias da diferença, perspectivistas e afropindorâmicas. Em 2022, sua tese recebeu o Grande Prêmio Unesp de Tese.
Por Fernanda Nunes
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