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Projeto da UFF implanta sistema natural de tratamento de esgoto e limpeza de córregos em periferias


O bairro da Mangueira, na Zona Norte do Rio de Janeiro, surgiu nos anos do Brasil Império e viu a cidade se transformar ao longo das décadas. Uma mudança significativa, no entanto, a comunidade mangueirense percebe apenas agora: as melhorias no saneamento básico do local, fruto do Projeto Omìayê. A iniciativa de baixo custo, realizada pelo Instituto Singular com a Universidade Federal Fluminense (UFF), reutiliza o óleo de cozinha dos moradores para produzir e distribuir gratuitamente o eco sabão e eco detergente com microrganismos capazes de melhorar a qualidade das águas contaminadas da localidade. Os produtos prometem revolucionar as condições precárias das estruturas de córrego de comunidades periféricas.

“O Projeto Omìayê é uma maneira de dar saúde para a favela. É o primeiro passo de um caminho que eu achei que não existia mais”, conta o professor do departamento de Geologia e Geofísica da UFF, Estefan Monteiro da Fonseca. A pesquisa atual, concretizada com a ecofábrica e o eco sabão introduzidos em bairros marginalizados, busca alternativas para promover a dignidade para os moradores e criar sistemas naturais de saneamento básico na região, com base em estudos sobre tecnologias que ajudam a reduzir os danos ao meio ambiente.

A biorremediação ambiental através do sabão  

As estruturas de comunidades periféricas, muitas vezes em morros, encostas e casas próximas umas das outras não permitem com que as redes de saneamento básico sejam dispostas da melhor maneira possível. Assim, diversos moradores sequer têm acesso aos sistemas coletores e acabam por usar córregos ou rios que cruzam o espaço para realizar o descarte de compostos orgânicos, explica Monteiro. “Por ser um ambiente com solo desnivelado e degradado, é difícil instalar uma estação de esgoto. Por isso, vimos nas favelas uma oportunidade de introduzir os microrganismos eficazes ali”, conta. 

A partir de técnicas japonesas de limpeza de ambientes e corpos d’água, é trazido à tona a ação dos microrganismos eficazes. São mais de 88 espécies de fungos, bactérias e lactobacilos que funcionam para “reciclar o material dos rejeitos orgânicos que estão no esgoto”. Segundo Monteiro, os agentes biológicos já estão inseridos no ambiente, mas estão em desequilíbrio, tornando-se incapazes de depurar os ecossistemas apropriadamente. Isso ocorre devido ao rápido crescimento dos centros urbanos, que sobrecarrega a capacidade de regeneração. “Ao invés de criar técnicas novas, usamos um mecanismo que já é natural”, indica Monteiro. “Pegamos os organismos que estão em excesso ou em falta e re-injetamos no meio ambiente e assim reforçamos a depuração.”

Em outras palavras, o meio ambiente já possui os microrganismos eficazes de diferentes espécies, sejam eles mais fortes ou mais fracos. Ao sobrecarregar o espaço, as mais sensíveis desaparecem e todas aquelas que agiam em conjunto passam a operar de forma autônoma. Para amenizar esse problema, os pesquisadores apostam na biorremediação, cuja função é “repor os organismos que foram extintos e, a partir disso, o ambiente se reequilibra de maneira rápida”, elucida Monteiro. 

O eco sabão e o eco detergente são produzidos e distribuídos pelos moradores da Mangueira. Foto: Reprodução/Projeto Omìayê

“O óleo de cozinha usado é filtrado para retirar impurezas, depois misturado com água, soda cáustica e, às vezes, álcool. A reação de saponificação transforma a gordura em sabão, que é moldado e seco antes do uso”, explica Monteiro. Em meio à produção do eco sabão e do eco detergente, são adicionados os fungos, bactérias e lactobacilos vivos que agem na depuração das águas. Ao serem utilizados na rotina dos moradores das comunidades, esses microrganismos retornam para os sistemas de esgoto e dão início ao processo de limpeza.

Neste sentido, a inserção dos organismos invisíveis a olho nu nos córregos e rios das comunidades periféricas é uma maneira eficaz, barata e rápida para limpar tais espaços, contornando as adversidades estruturais desses bairros. Além disso, os microrganismos não apenas degradam a poluição dos esgotos, mas também auxiliam nas questões sanitárias e de saúde da população. A tuberculose, por exemplo, é uma doença infecciosa e transmissível que atinge os pulmões e outros órgãos. Porém, com a biorremediação, esse fator pode ser reduzido: “ao fortalecer o ambiente, também destruímos o vírus. Não é apenas limpar o espaço, é também lutar pela saúde pública”, informa Monteiro. 

Sustentabilidade para e pelos moradores

Para o oceanógrafo, é essencial colocar o protagonismo na mão dos moradores das comunidades – ao incluí-los em todas as fases do projeto, o entendimento do impacto positivo do eco sabão é ainda maior. O objetivo do Omìayê é “espalhar a palavra dos microrganismos” no sabão e, dessa maneira, o exemplo se tornar a norma para a sociedade. “A lógica é que as pessoas adquiram consciência sobre a importância do tratamento do esgoto para, no futuro, elas não contaminarem os rios ou, pelo menos, tentarem protegê-los de alguma forma”, aponta Monteiro. Dessa maneira, a iniciativa também promove a autonomia da comunidade, geração de empregos e a sustentabilidade por meio de tecnologias inovadoras.

Ademais, a intenção do projeto de utilizar um item do cotidiano não foi ao acaso. Unido à reutilização do óleo de cozinha e à introdução dos microorganismos, as ações de sustentabilidade são intensificadas. Dessa forma, o projeto recicla o óleo de cozinha, limpa os córregos e traz benefícios para a comunidade de uma maneira que não altera o dia a dia da população. “Quando se promete ao pessoal da comunidade um produto de graça, todos guardam o óleo para trocar pelo sabão. É um processo que colocamos a responsabilidade de cuidar do meio ambiente na mão dos indivíduos. O modelo facilita a absorção da técnica pela comunidade e promove a conscientização sobre o cuidado com o meio ambiente”, reforça o professor.

Em agosto, o Projeto Omìayê inaugurou a primeira ecofábrica na comunidade da Mangueira e, além de produzir o sabão que será distribuído para os moradores, os microorganismos eficazes já foram introduzidos em parte do produto. Agora, os pesquisadores retornaram ao laboratório para entender quão efetivo é o eco sabão criado por eles. “O primeiro efeito do sabão e que já podemos notar foi o fim do mau cheiro dos córregos em duas horas”, aponta o professor Estefan Monteiro. “Isso já melhora significativamente a qualidade de vida das pessoas que moram na favela”. 

O protagonismo dos moradores no processo de criação do eco sabão é essencial para a iniciativa. Foto: Reprodução/Projeto Omìayê

“Nossa luta nesse momento é conseguir que esse se torne um modelo que possa ser replicado no Brasil inteiro”, anseia. A favela da Mangueira com a primeira ecofábrica do país e a Rocinha, futuro palco da pesquisa, são mundialmente conhecidas e, com isso, o alcance internacional torna-se palpável. “Para nós, essas comunidades são como laboratórios, onde podemos divulgar os resultados para o mundo. A Mangueira e a Rocinha serão as primeiras favelas verdes”, complementa o idealizador do projeto. 

De fora para o Brasil e vice-versa

A tecnologia da biorremediação não surgiu no Brasil, mas, sim, trazida do exterior. “Na Tailândia, a biorremediação é uma política nacional e a intenção de trazer para cá é como um empoderamento para os países tropicais”, explica o professor. De acordo com ele, há políticas no Oriente que utilizam da técnica com os microrganismos eficazes para a limpeza do meio ambiente, por exemplo, a despoluição da baía de Tóquio, desde 1986.

Monteiro explica que a técnica não é eficaz em locais com o clima temperado, como países europeus, com uma biodiversidade limitada e que, ao receber organismos específicos, podem correr riscos. Por outro lado, o clima no Brasil não apresenta grandes variações durante as estações do ano e isso permite com que a biodiversidade seja muito grande e, consequentemente, “o nosso meio ambiente seja muito mais resiliente e forte”. Nesse sentido, a aplicação de técnicas como a biorremediação é possível e eficaz em lugares com o clima e as estruturas brasileiras, principalmente nas comunidades periféricas, sem lidar com o chamado “efeito rebote”, um efeito secundário negativo, “resultante de uma mudança brusca nas condições ambientais”.

O pesquisador sabe que as consequências negativas não surgem aqui devido a um estudo previamente feito na Lagoa de Maricá, onde o resultado foi considerado excelente. Em 2021, a prefeitura do município em parceria com o grupo de pesquisa da UFF coordenado por Estefan Monteiro e a Companhia de Desenvolvimento em Maricá (CODEMAR) deu início ao projeto pioneiro de despoluição da Lagoa Araçatiba, a maior da cidade, com o método dos microrganismos eficazes.

“Eu passei três anos, sazonalmente, avaliando 30 pontos da lagoa e os resultados foram positivos. Em menos de seis meses, melhoramos a translucidez da água, melhoramos o mau cheiro, além de trazer de volta espécies que estavam extintas”, afirma Monteiro. “Reciclamos todo o lodo no fundo da lagoa e ele se tornou alimento para os peixes. Qualquer outro método poderia correr o risco de espantar esses animais, mas conseguimos aumentar tanto a fauna, que as pessoas de outros municípios da região passaram a vir para a laguna para pescar”, conta.

Em poucos meses de experimento com o método gradativo de remediação, a Lagoa Araçatiba estava revitalizada e com o ambiente reequilibrado. As espécies da macrofauna bentônica, indicadores naturais de qualidade, totalizavam quatro. Após o experimento, o número quadruplicou: eram 16 espécies vivendo no local. “O valor agregado ao método é tão grande, porque estamos apenas seguindo à par da natureza”, reforça o pesquisador.

Para ele, a melhora nas comunidades da Mangueira e Rocinha pode vir ainda mais rápido, devido ao tamanho dos córregos e rios das favelas, que são menores do que a laguna costeira de Maricá. Os dados, no entanto, só virão em longo prazo: “Tem pessoas dizendo que as condições dos córregos já melhoraram, mas ainda não temos em laboratório os dados da qualidade da água para afirmar com precisão. Precisamos de um ano e meio de estudos para comprovar que a melhora não é apenas um aspecto sazonal”, explica.

Além da medição da qualidade da água, os próximos passos do projeto se concentram na divulgação a nível nacional e internacional com auxílio do governo. “A grande questão é que precisamos de um apoio e um movimento para que os órgãos fiscalizadores façam a divulgação da iniciativa e, de repente, criar uma legislação”, vislumbra Monteiro, com o intuito de ampliar o alcance dessa transformação e impactar na qualidade de vida do maior número de pessoas possíveis.

“A iniciativa também conta com o apoio de uma universidade alemã, já que internacionalização é muito importante para obter mais confiança da população”, afirma o professor. Além disso, o projeto conta com uma emenda parlamentar do deputado Chico Alencar, que é o responsável por viabilizar o projeto na comunidade da Rocinha, que será implementado em outubro deste ano.

Universidade em campo 

A participação da UFF no Omìayê é efetivada por meio dos programas de extensão e a fundamentação teórica e interpretativa dos resultados do projeto – ou seja, a universidade traduz e comprova as melhorias, legitimando todos os processos da iniciativa. Segundo Monteiro, o Instituto Singular sozinho não tem acesso aos órgãos federais, portanto a UFF entra como mediadora e veículo de confiança para viabilizar os planos. “O papel da universidade é ideal, por meio do suporte técnico para que os estudos, os testes e as implementações aconteçam”, explica. “Eu levei dois pós-doutorandos que, agora, começaram a atuar diretamente na ecofábrica da Mangueira, contratados pelo Instituto. E, para dar continuidade, conseguimos o apoio do governo federal para levar a outras favelas”, menciona Monteiro. Os alunos fazem parte do Programa de Pós-Doutorado em Dinâmica dos Oceanos e da Terra na universidade.

A iniciativa conta com o suporte técnico da UFF e do Instituto Singular. Foto: Reprodução/Projeto Omìayê

Conhecimento na luta contra o racismo ambiental

Se por um lado o projeto é tão eficaz e possível, por outro, ainda há desafios. Segundo o professor, um aspecto que pode dificultar o tratamento é o entendimento cultural das técnicas: “as pessoas associam bactéria à doença e, quando dizemos que aplicamos  bactérias nas águas, as pessoas não compreendem bem”. Para ele, o vínculo do senso comum de que as bactérias são apenas fatores negativos pode levar a uma interpretação equivocada do projeto.

Para contornar essa situação, a iniciativa busca maneiras de explicar para o público o que realmente está sendo feito nas ecofábricas, nos laboratórios e as mudanças visíveis nos córregos. “Buscamos mostrar os dados, ir em congressos e fazer grandes movimentações de marketing para quebrar o pavor das pessoas em relação aos microrganismos. É questão de tempo e investimento”, ressalta.

O Projeto Omìayê levanta a bandeira da justiça climática e da importância de levar dignidade às pessoas que moram em comunidades, com córregos e sistemas de esgoto em estados precários. “Bairros mais periféricos ou a Baixa Fluminense, por exemplo, não têm os mesmos acessos e estruturas que os bairros da zona sul. Esse método é para isso”, esclarece Monteiro. “É um processo para combater essas desigualdades, conhecidas como racismo ambiental, para dar acesso à saúde e dignidade”.

O pesquisador explica que a iniciativa cumpre um papel importante, uma vez que  a implantação de   um saneamento básico convencional não é viável de ser feito em qualquer periferia. “Para fazer um sistema de esgoto, as pessoas teriam que ser realocadas, terem suas casas demolidas e existe uma preocupação financeira muito maior para mobilizar tudo isso”. O método do projeto, porém, surge como uma opção mais barata e com resultados positivos. “A ecofábrica na Mangueira é uma janela de esperança para que as coisas funcionem para as pessoas da favela”, finaliza Monteiro. 

 

Estefan Monteiro da Fonseca é professor do departamento de Geologia e Geofísica da UFF. Tem doutorado e mestrado em Geologia e Geofísica Marinha pela UFF e é graduado em Oceanografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atua na área de consultor em gerenciamento costeiro em empreendimentos de Energia, Óleo e Gás, Transportes na elaboração de estudos ambientais e diagnósticos de licenciamento e remediação de impactos.

 

Por Letícia Souza.

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